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Homenagear Pessoas ou Estátuas?


republicaac-792751.jpgDo lado republicano é a associação “República e Laicidade” quem até agora tem dado corpo à participação da sociedade civil nas comemorações do centenário da república. Com notável antecedência divulgou um extenso manifesto / programa para estes festejos, onde revela o propósito de concentrar as grandiosas celebrações em torno de “dois grandes tópicos”, dos quais o primeiro consiste em “divulgar a verdade histórica” sobre a primeira república, de forma “objectiva” e “rigorosa”, contrariando “uma visão distorcida e negativa” desse período, que afirma ter sido dada à luz e alimentada pelo Estado Novo, persistindo ainda “numa opinião pública menos esclarecida” [1].

Aqui temos um bom propósito inicial que logo se desvirtua, transviando-se pelos caminhos da propaganda. Começando com o louvável intuito de atingir a verdade histórica, não perde tempo a procurá-la e declara, precipitadamente, que esta se há de encontrar no combate à visão negativa da primeira república.
Pressupõe, sem reflexão prévia, que para corrigir a “visão distorcida”, é preciso encarar com bons olhos esse período tão acidentado, o que exige total passividade e falta de sentido crítico da parte do público, a quem acena com a preocupante hipótese de ser incluído na camada de “opinião pública menos esclarecida”. Não é essa a nossa forma de procurar a verdade, nem consideramos mais ou menos esclarecidos os nossos leitores. Dirigimo-nos áqueles que tenham a paciência de esperar a divulgação de estudos, imagens e documentos sobre a implantação da república, para tomarem então partido, segundo as suas inclinações.. Certamente alguns darão o seu aval às formas de combate político características deste período, sobretudo se gostarem de métodos expeditos, como a supressão de jornais, o recurso à bomba e as eleições com resultados decididos de antemão. Muitos ficarão perplexos com a revelação de uma democracia entendida como o “governo dos democratas”, e não o do povo. E outros, como de costume, deixar-se-ão acomodados na indiferença, comentando apenas que “eram outros tempos”.

Um outro ponto que não podemos deixar sem comentário, é aquele em que se atribui o mau nome da primeira república às calúnias dos seus adversários. Afirmação que seria válida para qualquer outro regime, pois é natural que sejam os inimigos de cada situação política quem vela pela exposição dos seus defeitos, não se pode, no entanto, aceitar a sua justeza no caso particular que temos em mãos, pois a má reputação deste regime deve muito mais aos seus partidários que aos seus opositores. Estes, naturalmente, exploraram as expressões de desilusão e arrependimento que por todos os lados se manifestavam. Mas o grande manancial de críticas, acusações, confissões e denúncias, o filão inesgotável para quem procure os pontos fracos do regime, encontra-se dentro das fileiras republicanas. E não falamos apenas de dissidentes nem de franjas marginais com reduzida influência no percurso do republicanismo português. As acusações graves contra o regime vêm de todos os escalões da hierarquia republicana, começando na mais alta magistratura da nação, passando pelos heróis supremos do regime, e sustentando-se nos escritores e artistas que a república elevou ao panteão. São estes os autores morais e materiais da opinião “negativa” que se disseminou sobre a época da primeira república. Atacaram o regime, o parlamento, os governos e os partidos em todos os tons, com uma riqueza de vocabulário e de argumentação que faria inveja aos mais encarniçados conspiradores monárquicos. A sua autoridade não se contrabalança encolhendo os ombros, nem chamando ignorantes ou “menos esclarecidos” áqueles que se deixam influenciar pelo peso de tantas acusações.

Todo aquele que tente responsabilizar os monárquicos e o Estado Novo pela má fama que caiu sobre a Primeira República, priva os genuínos republicanos dos direitos de autor que lhes pertencem na denúncia de violências, repressão, crimes, fraudes, corrupção, incompetência e despotismo. E isto já nos indica a feição que os festejos centenários querem tomar, ao que parece, desde o princípio: É muito forte a tentação de reduzir as comemorações a datas e nomes, esquecendo o que significam. Os grandes vultos da república serão homenageados, isso está garantido, mas o que disseram ou pensaram é matéria que será cuidadosamente ocultada, para não estragar os festejos. Em rigor pode dizer-se que serão festejadas as estátuas, no seu precioso silêncio, e esquecidos os homens, com as suas incómodas opiniões.

A opinião negativa que ainda prevalece entre os que têm alguma ideia sobre a primeira república, estará instalada nas mentes de pessoas mais ou menos esclarecidas, mas o que é certo é que todas elas poderiam invocar a seu favor o testemunho das mais altas figuras da política republicana. Em caso de necessidade teriam ao seu dispor duras e cruas definições desse período da nossa história, apresentadas por presidentes da república, primeiros ministros, deputados, chefes dos principais partidos, e o próprio “fundador da república”, o “herói da rotunda” Machado Santos. Se isto ainda lhes não bastasse, poderiam recorrer ao veredicto de instituições que todos os republicanos respeitam, incluindo o do próprio Partido Republicano Português.

Para quem tenha repugnância em pronunciar-se sobre as calamidades da república, temendo ser associado à massa “menos esclarecida” do público, aqui vai uma pequena amostra do muito que se disse sobre esses tempos memoráveis:

“na instabilidade dos ministerios, e na sua apathica esterilidade, fez-se sempre sentir essa inicial dissidencia …”

Partido Republicano Portuguez (1913)

Campeavam infrenes por todo o Paiz a corrupção e o despotismo governativos, quando entrou o ano de 1915. A republica desacreditava-se dia a dia, os seus mais salientes paladinos desciam no conceito publico. Tres annos ininterruptos de governo, clara ou dissimuladamente democratico, tinham quasi esgotada a paciencia publica. Entre varios destacavam-se os casos de Ambaca, de Rodam, da Panasqueira, do Opio, de S. Thomé, das Binubas, do Divorcio, tidos no publico como outras tantas negociatas. O empastelamento dos jornaes, a suspensão e aprehensão de outros, e o refreiamento de todos pelo partidarismo, pela imposição ou pela peita, forçavam a imprensa a calar os escandalos, feitos ou incumbados. A espada de Damocles que não tiravam de cima dos cidadãos, para os ter calados e quietos, eram, depois de os terem infamado, o tiro, a bomba, o cavallo marinho, o vexame, a arruaça e o insulto. As prisões regorgitavam de presos politicos. O desassocego e o receio pareciam já indecipaveis
General Joaquim Pimenta de Castro, Ministro da Guerra em 1911 e Primeiro Ministro em 1915 (No seu livro “O Ditador e a Affrontosa Ditadura”).

“o governo constitui o maior perigo para a republica”
“Governo sahido d´um partido cuja maxima preoccupação é destruir os outros, como tantas vezes o tem apregoado pela escripta dos seus jornaes e pela voz dos seus tribunos, não pode elle contar, porque isso seria a maxima vileza, com a minima parcella de solidariedade que os outros lhe dêem. Muito pelo contrario, tem de contar com o seu ataque em todas as circunstancias, pois que elle é o perigo que a todos sobreleva, e enquanto elle durar não ha que reparar nos outros”.

Brito Camacho, chefe do Partido Unionista. Carta dirigida em Janeiro de 1915 ao presidente da república e publicada por Manuel de Arriaga no seu livro “Na Primeira Presidencia da Republica Portugueza. Um Breve Relatorio”.
“O que se está passando nesta casa do parlamento nem mesmo tem precedentes no tempo da monarchia…”
“Através de calumnias e de infamias, de provocações e de ameaças, que chegaram dentro dos arraiais republicanos ao que nunca tinham attingido durante a monarchia, cumpri o meu dever de não desunir o partido…”

Afonso Costa, chefe do Partido Democrático, citado por Malheiro Dias, em “Zona de Tufões”, 1912.

“Os ministros ignoram tudo das suas funções, assinam de cruz os documentos mais disparatados. No ministério parece não haver um único funcionário competente”.
“Os desatinos da República tiram toda a autoridade aos seus diplomatas”.

João Chagas (Primeiro-Ministro do 1º governo constitucional da república, representante de Portugal em França), Diário, Vol. I.

“Os jornais franceses dizem coisas terríveis sobre a república em Portugal. Citam republicanos portugueses”.
João Chagas, Diário, Vol. I.

“Procuro ver se no passado litterario de Portugal isto foi sempre assim, e tenho a impressão de que isto é novo. É o periodo algido da decadencia intellectual. Não se desce mais. Na oratoria, o Antonio José d´Almeida; na politica o Brito Camacho; na litteratura o Lopes de Mendonça. O que é que se passa na mentalidade portugueza e como chegou a este miserando estado?Attribuem-se a Carlos V estes juizos: “os francezes parecem doidos e têm juizo. Os hespanhoes parece que têm juizo e são doidos. Os portuguezes parecem doidos e são doidos”. O que estou vendo porém não é loucura: é cretinismo .”
João Chagas, Diário, Vol. II.

“Nem eu sei se é maior a minha indignação do que a minha vergonha. O que sei é que isto me desola e me faz doente, por ver que a Republica vae tão mal”.
Eusébio Leão, carta a João Chagas, publicada no Diário, Vol. II.

“Depois que o povo passou para o segundo plano, a república perdeu a grandeza”.
Raúl Brandão, Memórias, Vol. II.

Em Agosto de 1911 o Partido Socialista Português dava a conhecer ao público a opinião das classes proletárias, de quem se afirmava íntimo amigo e confidente:
“Na consciência pública principia a despontar a suspeita, que julgamos deveras arrojada, de que todo o trabalho de demolição feito pelos apóstolos da República, longe de se basear na legítima aspiração de um ideal infindo, teria tido por mero e desprezível objectivo a conquista do poder por motivos de ordem mercantil.
Não o quere assim acreditar o Partido Socialista Português; mas como, pela índole e natureza dos seus ideais, mergulha no mais fundo das numerosas falanges do proletariado, nele surpreende a formação sempre crescente e cada vez mais nítida desta deplorável corrente de opinião.
Nas falanges anarquistas, tanto como entre os sindicalistas e socialistas, e mesmo na opinião mais ou menos hesitante dos chamados indiferentes; no seio, enfim, de todo o proletariado português lavra profundo desgosto, e até revolta, contra o triste espectáculo que ao país e ao mundo estão dando neste momento os mais denodados caudilhos da democracia republicana.
(…) E, mais do que isto, o Partido Socialista entende que deve ser lançada aos actuais dirigentes e aos elementos mais preponderantes da República Portuguesa a inteira responsabilidade por todas as perturbações de ordem últimamente havidas e por todas que parecem prestes a haver, incluindo as responsabilidades duma possível Guerra Civil (…)

Lisboa, 31 de Agosto de 1911 - O Partido Socialista Português”.
Comunicado transcrito nas Memórias de Raúl Brandão, Vol. II.

“Quer rindo, quer chorando, de qualquer ponto de vista e em qualquer disposição de espírito em que a consideremos, a República portuguesa apresenta-nos sempre como fundamental característica a servil imitação política de todos os desvarios e de todos os erros em que a república francesa tem incorrido. A vantagem dos pequenos povos modestos que vão atrás dos outros na marcha da civilização é a de evitar no caminho os tropeções e as quedas dos que vão adiante. A República portuguesa é a retardatária obtusa para quem essa lição é inútil”.
Ramalho Ortigão, Últimas Farpas.

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[1] “A divulgação de uma leitura objectiva e rigorosa da História da Primeira República Portuguesa, repondo a verdade histórica e contrariando uma visão distorcida e negativa desse período que, construída e promovida pelos adversários da República durante a vigência do Estado Novo, ainda persiste numa opinião pública menos esclarecida”. Associação Cívica República e Laicidade – Manifesto / programa para comemorar o centenário da República em Portugal.

Carlos Bobone