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Liberdade de imprensa: a versão republicana


A república decretou a liberdade de imprensa (lei de 28 de Outubro de 1910), mas logo nos primeiros tempos deixou transparecer que essa “conquista social” beneficiaria apenas os seus incondicionais correligionários, e mesmo dentre estes, só os apoiantes da facção que estivesse instalada no governo. Não existindo censura instituída nem critérios legais que limitassem a liberdade de expressão, o ofício da repressão da palavra ficou entregue a uma estranha coligação de forças oficiais e clandestinas que proibiam, assaltavam, empastelavam, submetiam a censura prévia, cercavam os jornais e perseguiam os ardinas.As autoridades tiveram de conceber um modo de operar que se adaptasse às frequentes ordens de apreensão e vigilância de jornais, dado que as autoridades do novo regime fizeram da perseguição à imprensa uma actividade regular, não obstante a lei de 28 de outubro que garantia “o direito de expressão do pensamento pela imprensa, cujo exercicio é livre, independente de caução, censura ou autorisação prévia“, prevendo pesadas penas contra qualquer autoridade que embaraçasse a livre circulação de quaisquer publicações, ainda que para tanto tivesse ordem ou autorização de um superior legítimo.

Afonso Costa censura jornais

O jogador Afonso Costa consegue “tombar” os jornais oposicionistas, usando vários tipos de bola: a apreensão, a suspensão, o assalto, o empastelamento.

Antes de estalarem as discórdias entre os dirigentes do novo regime, as vítimas eram sobretudo os órgãos da imprensa monárquica. O método preferido era o assalto aos jornais, com destruição do material tipográfico. A palavra “empastelamento” tornou-se um dos vocábulos mais em voga na linguagem política do novo regime.

(Empastelar = Reduzir a uma massa informe; amontoar confusamente caracteres tipográficos; misturar tipos).

Quando as divergências entre republicanos produziram a fragmentação do partido original, os métodos de repressão foram usados contra jornais “unionistas” e “evolucionistas”, com a mesma ferocidade que tinha sido dedicada aos monárquicos. Nos primeiros anos do regime a polícia desenvolveu uma técnica apropriada ao cerco das sedes dos jornais e à vigilância dos jornalistas, o que lhe permitia, por vezes, apanhar a edição quase completa dos periódicos antes de a mesma ser distribuída. Se alguns exemplares escapassem, os agentes da polícia viam-se forçados a perseguir os ardinas e a vigiar as estações de comboios de onde pudessem ser enviados alguns números para difusão na província.

As perseguições à imprensa não estavam sob a alçada exclusiva do governo central. Também as autoridades regionais, governadores civis e administradores de concelhos, decidiam por vezes proibir a circulação, dentro do território que tutelavam, de jornais que lhes parecessem indignos da atenção dos seus administrados.

Do lado dos jornalistas, também se desenvolveram “manhas” para salvar os jornais da apreensão e destruição. Quando recebiam avisos do governo civil anunciando que o jornal estava proibido de circular e verificavam que a polícia cercava as instalações do jornal, mudava-se o nome da publicação e alterava-se um ou outro texto, evitando dar à luz aquele que provocara a ira do governo. Depois fazia-se sair à rua um ardina, levando apenas um exemplar do jornal. Se a polícia o deixasse circular, punham-se na rua mais três ou quatro, à experiência. Se a polícia os levasse para o governo civil e apreendesse os jornais, não se punham mais em circulação.

Cronologia sumária de alguns casos:
22 de Outubro de 1910 - São proibidas “quaesquer publicações pornographicas ou redigidas em linguagem despejada e provocadora”.

28 de Outubro de 1910 - É decretada a liberdade de imprensa.

8 de Janeiro de 1911 - Assalto e destruição de 3 jornais monárquicos.

Janeiro de 1911 - É proibida a circulação de “O Povo de Aveiro”, do jornalista Francisco Homem Christo.

20 de Janeiro de 1911: Folheto de Homem Christo: “Aos assignantes e leitores de O Povo de Aveiro e ao publico portuguez”:

O Povo de Aveiro foi supprimido. Ora o Povo de Aveiro ou havia de ser O Povo de Aveiro ou não havia de ser coisa nenhuma. Eu não podia, eu não devia substituir O Povo de Aveiro por um pastel que dissesse só aquilo que o ministro da justiça consentisse. Portanto, não substituo por outro jornal O Povo de Aveiro. Espero, e não hei de esperar muito, que as circumstancias me permittam restabelece-lo. Por outro lado, o ministro da justiça não podia, não pode ficar sem uma resposta digna de mim e da dignidade da causa que defendo, a causa da verdade, e da salvação e honra do paiz. O ministro da justiça insultou-me porque tinha a certeza de que eu não lhe podia responder (…) Na sexta-feira dessa semana era eu intimado, sob pena de suspensão do Povo de Aveiro, a escrever em termos convenientes! Os insultos, no Mundo e no Seculo, redobraram no domingo, na segunda e na terça. No Mundo, o artigo mais insultuoso, mais rancoroso, mais violento, era escripto pelo proprio ministro da justiça. Na quinta-feira era-me intimada a suppressão do Povo de Aveiro! Insultavam-me, mas, ao mesmo tempo, impunham-me silencio! (…)

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26 de Fevereiro de 1911: O jornal católico de Viseu é assaltado e destruído, em represália pela divulgação da “Pastoral Colectiva dos Bispos”.

Fevereiro de 1911 - O “Correio da Manhã” publica uma carta de Fialho de Almeida, renunciando a escrever as suas crónicas políticas, em consequência das ameaças que recebeu: “Foi acordado que, se as minhas correspondências para o Correio da Manhã continuarem a referir-se desagradávelmente para a República, eu também serei convidado a ausentar-me por algum tempo. Isto é categóricamente oficial.(…) pela feição grave que a intolerância jornalística está tomando em Lisboa (e no resto do país seguir-se-á) eu delibero por agora, até à reunião das Côrtes, ou ao restabelecimento da normalidade, abster-me de me ocupar completamente da política portuguesa(…) Resolvo escrever cartas sobre todas as matérias que não contendam com a política da República, e ignorar esta, até um dia em que a minha desforra chegue, e mui pela certa chegará“. Memórias de Raúl Brandão, Vol. II.

16 de Fevereiro de 1911: “No Porto jornais suspensos, jornais assaltados. Bruno publica a seguinte DECLARAÇÃO AO POVO E AO GOVERNO

Em face dos deploraveis acontecimentos ocorridos na noite de hontem n´esta cidade, e tendo nós mesmos recebido, por mais d´uma vez, a ameaça de que a nossa redacção seria dentro em breves dias assaltada, achando-se, pois, a nossa liberdade e a nossa segurança pessoal em flagrante perigo, protestando contra a situação intoleravel em que toda a cidade se encontra, resolvemos suspender desde hoje a publicação do Diario da Tarde, até que providencias sérias e efficazes sejam dadas e, em virtude d´ellas, se restabeleça a normalidade legal, que permitta ao cidadão a tranquilidade moral pela confiança, justificada então, nas auctoridades constituidas.
Porto, 16 de fevereiro de 1911.
Pelo Diario da Tarde
José Pereira de Sampaio
“.
Transcrito nas Memórias de Raúl Brandão, Vol. II.

20 de Agosto de 1911: “O País”, que é radical, esteve há dias para ser empastelado por atacar a candidatura de Bernardino Machado” (a Presidente da República). Memórias de Raúl Brandão, Vol. II.

30 de Janeiro de 1912 - é proclamado o Estado de Sítio, em consequência da greve operária. Presos alguns monárquicos, entre eles José de Azevedo Castelo Branco, por, segundo o governo, terem instigado a greve. No dia seguinte “aos jornaes era notificado que não lhes seria consentido circularem sem a censura prévia da autoridade militar!” (Carlos Malheiro Dias, Zona de Tufões).

23 de Dezembro de 1914 - É proibida a circulação do jornal “A Lucta”, de Brito Camacho, onde devia ser publicado um artigo do director sobre a intervenção de Portugal na guerra. A sede do jornal é cercada pela polícia e todos os trabalhadores são revistados à saída, para garantir que não levam exemplares do diário. Brito Camacho começa a publicar um novo jornal com o título de “A Notícia” - órgão provisório da União Republicana. “Sairá pela manhã ou à noite, como convier ao governo”.

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João Eloy, director da polícia de investigação criminal de Lisboa, preparando o assalto a um jornal monárquico, sem se embaraçar com as “garantias individuais” ou com a “lei de imprensa”.

cr_imprensa_silenciada_thalassa.jpgA guerra na Europa, desde Agosto de 1914, deunovo alentoao combate que as autoridades da república travavam com a imprensa. Alegando o pretexto de “garantir a nossa situação internacional”, foram severamente vigiados e amordaçados todos os jornais que não ofereciam garantias de fidelidade ao governo.

No final de 1914 “O Thalassa” apresentava o balanço de um semestre de relações entre a imprensa e o poder republicano. Deste balanço transcrevemos apenas o que respeita aos dois primeiros meses, para não enfastiarmos os leitores com o monótono desfiar de violências e ilegalidades:

“A IMPRENSA PORTUGUEZA NO ESTREBUCHAR DO BERNARDINISMO”

“EPHEMERIDES DA SEGUNDA METADE DO ANNO DE 1914″

Julho, 8 - Um revisor dos caminhos de ferro do Minho e Douro cassa os passes a dois vendedores de “O Dia” e ambaca-lhes os exemplares do jornal que lhes encontra.

13 - São assaltadas as instalações da “Liberdade”, diário católico doPorto, e empastelado todo o tipo. A polícia alega que estava desprevenida do assalto, não podendo evitá-lo.

24 - São querelados “O Dia” e o “Diário da Manhã”.

28 - Um vendedor de jornais é assaltado no Seixal por um grupo de “dedicados defensores” que, de pistola em punho, o intimam a não vender jornais monárquicos.

Agosto, 2 - Em Serpa é espancado pelos “dedicados defensores” um vendedor de jornais, por vender o “Jornal da Noite”.

5 - Bernardino Machado, presidente do ministério, em circular aos governadores civis, manda intimar os “jornais reaccionários” a que não façam qualquer referência à necessidade de mudança de instituições para garantir a nossa situação internacional, sob pena de desobediência.
- Eloy, juiz de investigação criminal, notifica aos directores dos jornais monárquicos que “é prohibido o abuso de insinuar directa ou indirectamente, que a salvação do paiz depende do regresso à monarchia“. Por este motivo “O Dia” retira à última hora o seu artigo de fundo.
- No Porto são tomadas providências policiais para impedir um assalto às instalações da “Liberdade”.
- É apreendido o “Jornal da Noite”.

6 - João Eloy avisa o editor de “A Alvorada” de que este jornal não pode circular sem ser previamente submetido à censura.
- É apreendida “A Restauração”.

7 -É apreendida “A Restauração” em Lisboa, e a “Liberdade” no Porto.

8 - “A Vanguarda” tem censura prévia.- São apreendidos “Os Ridículos” e “A Restauração”.

9 - “A Restauração”, sujeita a censura prévia, é impedida de circular.- São apreendidos o “Diário da Manhã” e um suplemento de “A Restauração”.

10 - É apreendido “O Dia”.

11 - O “Diário da Manhã” é intimado, pelo comando da polícia, a interromper uma série de artigos que vinha publicando, de interesse especial para a classe dos sargentos do exército.
- São apreendidos o “PapagaioReal” e o “Jornal da Noite”.

12 - É apreendido o “Jornal da Noite”.

13 - É apreendido o “Jornal da Noite”.

14 - É expedida ordem de captura contra os jornalistas Albertino da Silva e Moreira de Almeida, incriminados como boateiros, por terem publicado no “Diário da Manhã” e no “O Dia” um artigo doutrinário, “Monarchia e Republica”, do antigo ministro Luís de Magalhães.
- É apreendido o “Diário da Manhã”.

15 - É apreendido o “Diário da Manhã” e “O Dia” é proibido de circular.

16 - São apreendidos “O Diário da Manhã” e “A Restauração”.

17 - Os jornalistas Moreira de Almeida e Albertino da Silva, pronunciados como boateiros, pagam fiança de 1.000$000 reis cada um, para não perderem a liberdade. “O Diário da Manhã”, julgando inútil escrever para o governo e para a polícia, suspende a publicação.
- É apreendida “A Restauração”, e “O Dia” é proibido de circular, sendo presos dez dos seus vendedores.

18 - Bernardino Machado ordena a apreensão de “O Dia”, mas depois reconsidera e deixa-o circular.
- O agente do “Jornal da Noite” em Alvaiázere é chamado à Administração do concelho para declarar que jornais vende.
- É apreendido o “Jornal da Noite”.

19 - São apreendidos “Os Ridiculos” e o “Jornal da Noite.

20 - Rocha Martins, director do “Jornal da Noite”, é intimado por João Eloy, em nome do governo, a mudar de atitude, sob pena de lhe ser suspenso o jornal.
- No pátio do governo civil de Lisboa é feito auto da fé dos exemplares apreendidos do “Diário da Manhã” e do “Jornal da Noite”.
- É apreendido o “Jornal da Noite”, que suspende a publicação no 22º número, tendo sofrido sete apreensões.

21 - É apreendido “O Dia”, sendo presos seis dos seus vendedores.

22 - Abraão de Carvalho, adjunto de João Eloy, declara ao administrador de “O Dia” que a lei de imprensa não serve para os jornais monárquicos.
- É apreendido “O Dia”.

24 - “O Dia”, verificando que é o banditismo que triunfa, suspende a publicação até que a lei substitua o arbítrio, e é apreendido.

25 - É apreendida “A Restauração”.

26 - É apreendida “A Nação”.

27 - “A Restauração” publica o 1º número da sua edição da noite e é apreendida.

28 - “A Restauração” reedita toda a matéria da sua edição da noite anterior e não é apreendida.

30 - Bernardino Machado reúne-se com os gráficos que ficaram desempregados em consequência das suspensões e apreensões de jornais, e observa-lhes que é necessário acabar com a imprensa monárquica.

31 - O administrador do concelho de Ceia proíbe a venda de “A Restauração” até nova ordem.
- É apreendida “A Restauração”.

Em 20 de Setembro de 1914, pouco depois das 10 horas da noite, um bando de “dedicados defensores” da república inicia uma série de assaltos às instalações dos jornais monárquicos “A Nação”, “O Dia”, Jornal da Noite” e “A Restauração”, e às dos jornais humorísticos “Os Ridículos” e “O Thalassa”, destruindo tudo o que encontram. As autoridades desinteressam-se dos assaltos, mas prendem os jornalistas de “A Restauração” por se tentarem defender. São impunemente agredidos os directores de “A Nação” e “Jornal da Noite”.

Em 26 de Setembro reuniu-se a Associação dos Distribuidores de Jornais para tratar da crise provocada pelos assaltos à imprensa. Diversos associados protestaram contra o vandalismo.

No dia seguinte reuniu a classe dos compositores tipográficos para apreciar a situação em que ficavam os companheiros dos quadros dos jornais assaltados, condenando os assaltos a destruição das tipografias, e as violências e prejuizos de que são vítimas os tipógrafos, alheios à política dos jornais em que trabalhavam.

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Um jornal monárquico apanhado na armadilha do “arbítrio”.

Num regime que proclamara a liberdade de imprensa, os ataques à mesma eram feitos sem justificação, ao sabor das conveniências dos governos.

Uma Caricatura bastava para atrair as iras governamentais sobre o jornal que a publicasse.

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O “Thalassa”, no seu número de 3 de Setembro de 1914, incluía esta caricatura contra o tratado de comércio que o governo republicano assinara com a Inglaterra. Tanto bastou para que todos os exemplares do jornal fossem apreendidos, sem justificação alguma. Os redactores do “Thalassa” tiveram de procurar na imprensa bem informada as razões da apreensão:
Porque fomos aprehendidos? Na policia não o dizem aos profanos mas, graças à boa informação do nosso venerando e incolor collega Diário de Notícias, soubemos as razões. Consta d´este bocadinho publicado no referido diario, na sexta-feira ultima:

O sr. dr. João Eloy, director da policia d´investigação, por ordem superior, mandou aprehender pela policia o jornal O Thalassa, por causa da página dedicada ao tratado de commercio com a Inglaterra.

Vêem? Ora aqui está! Foi por causa da nossa pagina dedicada ao tratado de commercio com a Inglaterra. Nem pela penna, nem pelo lapis nos podemos referir ao celeberrimo tratado. Entendidos, portanto, nós… e o paiz, que certamente comprehenderá o que significa este silencio imposto pela força“.

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No número seguinte, a pena de Jorge Colaço ilustrava a inutilidade dos esforços feitos por Bernardino Machado para silenciar este jornal monárquico.

Carlos Bobone