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Eleições e Historiadores


Tema difícil, tema ingrato para os historiadores republicanos, as eleições são, no entanto, assunto inevitável quando se estuda um regime que tanto se ufanou do seu carácter democrático. A justificação para as bombas, os golpes revolucionários, os assassínios políticos, sempre foi a vontade do povo, que se presumia oprimida, abafada, silenciada sob o peso da autoridade monárquica.


Conhecida a constância e insistência com que a propaganda republicana associou os conceitos de república e democracia, salientando sempre a natureza popular das aspirações republicanas e a impossibilidade de conciliação do regime monárquico com a soberania do povo, nenhuma outra atitude seria de esperar, da parte do regime nascido em 5 / 10, senão um devoto e escrupuloso respeito pelo carácter electivo de todos os poderes públicos.

No caso particular da república portuguesa, esta atitude seria tanto mais esperada quanto só por esse caminho poderia encontrar o regime a justificação para a tomada do poder pelas armas. Do ponto de vista democrático, um golpe de força só se justifica quando um povo se encontra impedido de exprimir a sua vontade.

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Percebe-se, pois, o doloroso desconforto dos historiadores afectos à república quando, levados pela sequência dos temas, lhes cabe a tarefa de falar das eleições republicanas. Não é fácil encarar o despudorado desprezo com que os seus heróis trataram a vontade dos eleitores. Perante esta miséria, os cronistas do regime hesitam entre a fuga ao assunto, o desvio das atenções ou o ataque aos adversários. Ser-lhes-ia mais grato descartar o problema fulminando as objecções com uma tirada eloquente, como fez o deputado Alexandre Braga no discurso que inaugurou a Assembleia constituinte:

Cuido desnecessario accentuar a indiscutivel legitimidade d´esta assembléa para arrogar-se a funcção representativa do paiz, no momento em que ella sancciona, pelo direito, o facto historico que transformou as nossas instituições politicas. E cuido-o desnecessario, porque a dignidade civica de todos nós se sentiria, por certo, degradada, se eu a rebaixasse até à ignominia de dar ouvidos ao latido de mastins desnacionalizados, que, lá de longe, e a soldo da jorna cosmopolita do clericalismo, rosna contra nós o seu odio envenenado e impotente“.

Mas a distância temporal retira eficácia a estes sonoros insultos, e os historiadores dos nossos dias precisam de recursos mais sofisticados para embelezarem o tortuoso processo que entregou o parlamento nas mãos da república. As eleições de 1911, em que o partido republicano obteve 97% das cadeiras parlamentares, são um caso particularmente difícil de explicar. Como conciliar o conceito de pluralismo com o de monopólio do poder? Como se pode aceitar que o partido republicano, nomeando deputados sem votação em grande parte dos círculos, estivesse a promover a representação da vontade nacional?

É aqui que se exibe a riqueza de recursos dos historiadores.

Raul Rego decide-se a passar por cima do tema correndo como por ferro em brasa. Limita-se a dizer que os monárquicos não tiveram coragem de se apresentar às eleições e detém-se depois na pormenorizada descrição dos concorridos festejos que assinalaram a primeira sessão do parlamento, comovendo-se com a magnífica jornada de festa popular a que se assistiu então (Raúl Rego, História da República. Lisboa, Círculo de Leitores, 1986). Para este paladino da república o regime já estava legitimado desde o dia 5 de outubro, dada a falta de combatividade dos monárquicos. Fica assim estabelecido um fecundo critério para se avaliar a legitimidade dos regimes, medindo-a pela agressividade e coragem física dos seus apoiantes.

David Ferreira apresenta uma justificação muito diferente para o monolitismo do primeiro parlamento republicano. Segundo ele a supremacia do partido republicano deveu-se à atitude dos monárquicos, que se puseram de parte, não por falta de coragem mas por deliberada intenção de afronta à república, querendo mostrar que não a reconheciam nem acatavam as suas instituições.

Oliveira Marques prefere iludir a questão da representatividade. Tratando-se de um parlamento em que quase só existe um partido, não se detém a examinar a pluralidade das opiniões, preferindo debruçar-se sobre as origens sociais dos “representantes do povo”, tecendo demoradas análises das profissões que estavam mais “representadas” no parlamento, como se cada deputado representasse a sua profissão e o parlamento fosse uma câmara corporativa.. Assim sugere um conceito alternativo de representatividade democrática: já que não estavam representadas no parlamento opiniões variadas, pelo menos havia uma certa variedade nas profissões com assento no areópago. Consciente das objecções que este conceito pode levantar, propõe uma nova fórmula de representatividade, dando-lhe carácter meramente numérico, independente da vontade dos eleitores: para Oliveira Marques o número de deputados é um índice da representatividade do parlamento. A Assembleia Constituinte de 1911 tinha 1 deputado por 27 000 habitantes do território português, o que lhe dava, segundo o ilustre historiador, uma”representatividade bastante superior à do constitucionalismo monárquico”. Mas de seguida vê-se forçado a reconhecer que, como alguns destes “representantes do povo” foram transferidos para o senado assim que se votou a constituição, o parlamento perdeu 71 deputados, e por isso representatividade, ficando reduzido a um deputado por 36 500 habitantes (A. H. de Oliveira Marques, A Primeira República. Para Uma visão Estrutural. Lisboa, Livros Horizonte).

Carlos Bobone