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Anti-Jesuitismo l


A propaganda republicana cresceu em eficácia nas últimas décadas do século XIX, desde que descobriu um inimigo a apontar às massas, atribuindo-lhe a responsabilidade de todos os males de que padecia o país, de todo o atraso, de toda a miséria, de toda a falta de energia, de toda a decadência portuguesas. A capacidade mobilizadora do mito anti-jesuítico foi um filão explorado até aos limites da insanidade. Denunciando os jesuítas como perversos agentes do mal, autores de actividades obscurantistas e entorpecedoras que tinham levado o país ao mais extremo abismo da decadência, abriram-se as portas a desvairadas acusações, sem contenção alguma, sem o temor da inverosimilhança, explorando e pondo a descoberto as amplas dimensões da credulidade popular.

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Quando algum curioso se dispõe a percorrer esse período dourado que foi, para a nostalgia republicana, o da propaganda no tempo da monarquia, encontra com surpresa a presença dominante, obsessiva, invasora, desse tema que domina todos os lugares da eloquência republicana, desde o editorial e a coluna de opinião até à nota solta ou ao folhetim ficcional: a malevolência dos Jesuítas. Não se compreende facilmente esta singular linha de rumo de um partido que, para abater o regime monárquico, concentra as suas baterias sobre o “jesuitismo”, mas a abundância de materiais comprovativos desta opção estratégica não deixa lugar a dúvidas. As presumíveis actividades maléficas dos discípulos de Santo Inácio recolheram o melhor e mais dilatado esforço da retórica, tanto escrita como oral, produzida pela fina flor da intelectualidade republicana. Os mais categorizados tribunos do PRP fulminaram sobre a Companhia de Jesus as mais luzidas pérolas da sua reputada oratória, ao mesmo tempo que os doutos e incansáveis propagandistas da “ideia nova” gastaram as suas gabadas energias na denúncia de tremendas conspirações da “seita negra”. Aqueles que tinham maior ambição intelectual produziram grossos e agressivos volumes de literatura anti-jesuítica, como os de Miguel Bombarda (A Ciência e o Jesuitismo), José Caldas (A Corja Negra), Borges Grainha (Portugal Jesuíta) ou Lino de Assunção (História Geral dos Jesuítas). Os escribas dotados de menor fôlego enchiam as páginas das suas folhas de couve com violentas objurgatórias contra os inacianos, nas quais não havia limites aos insultos e às acusações que se permitiam despejar. Quando queriam resumir os defeitos dos jesuítas, usavam expressões que abrangessem toda a casta de crimes ou pecados, de modo a não deixar de fora nenhum conhecido ou imaginado: “Os sombrios abysmos da theologia moral desta associação religiosa encerram prodigios de tanta abominação e materiaes de tam extraordinários e detestaveis excessos, que dificilmente a acção mais depravada ou o gesto mais revoltante deixará de encontrar ali aplauso ou defensor”, assegurava José Caldas, escritor com reputação de entendido na história eclesiástica portuguesa. Tamanha concentração de esforços propagandísticos contra uma ordem religiosa é sinal de que semelhantes escritos, por muito absurdos e irrelevantes que nos pareçam hoje, não foram produto de ocasionais e inconsequentes delírios. Nascidos de uma estratégia bem definida, mostram-nos a importância que assume, em qualquer campanha política, a definição de um inimigo, real ou fictício, mas claramente identificado, a quem se possam atribuir todos os males do mundo. Pioneiro de técnicas de propaganda que haviam de ter larga difusão mundial na primeira metade do século XX, o republicanismo português mostrou, neste ponto, uma capacidade de antecipação que lhe faltou na maior parte das outras matérias. Nas vésperas da tomada do poder, a cúpula do Partido Republicano estava cheia de afamados oradores, conferencistas e panfletários anti-jesuíticos: Teófilo Braga, Cândido dos Reis, Miguel Bombarda, Alexandre Braga, Bernardino Machado, todos eles tinham dado à estampa as suas divagações cheias de presumida erudição contra a Companhia de Jesus. O anti-jesuítismo tinha, naturalmente, uma versão para o consumo das classes mais cultas e outra para o das massas populares. A primeira versão censurava aos jesuítas a sua fidelidade ao pensamento dogmático, à ortodoxia teológica e à filosofia escolástica, que os tornava inimigos das ideias “modernas”, “positivas” e “progressivas”. Invocava Oliveira Martins e Antero de Quental para assegurar que a Companhia de Jesus era responsável pela decadência dos povos peninsulares, impedindo-os de acompanharem o movimento de renovação do pensamento europeu. A segunda versão, que encontrou largo eco na credulidade popular, exigiu acusações mais repugnantes, que chocassem os espíritos simples. Aproveitando as controvérsias do século XVII, em que os jesuítas eram acusados de excessiva complacência perante certo tipo de pecados, a propaganda republicana desfigurou as características da Companhia de Jesus, descrevendo-a como um centro de corrupção moral, de cobiça, de devassidão, construindo assim um retrato dos jesuítas onde cabiam todos os defeitos: devassos, assassinos, falsificadores, burlões, espiões, conspiradores, violadores, raptores de crianças, regicidas, envenenadores.

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Na falta de casos reais recorria-se à ficção: folhetos de de cordel, poesia panfletária ou satírica, romances criminais ou eróticos, cartazes de rua ou folhetins diários, difundiam as “infâmias” dos jesuítas, acobertando-se de qualquer acção judicial sob o manto da criação literária. Assim se espevitava a ira das massas, consumidoras dessa literatura novelística cuja acção decorria num quadro de crime, perversão e intrigas urdidas pelos padres da “seita negra”. No final o virtuoso herói republicano salvava as famílias à beira da desgraça e levava à justiça os jesuítas, pondo a descoberto os crimes executados por estes com diabólica frieza. O puritanismo dos leitores era também largamente explorado, proliferando o herói que salvava “in extremis” a honra de uma virtuosa donzela, prestes a ser vítima dos “brutais instintos” de um devasso jesuíta. O vocabulário anti-jesuítico, de tanto ser usado, adquiriu certas expressões habituais, quase obrigatórias. Qualquer alusão à vida sexual dos padres requeria a fórmula “brutais instintos”, e presumia-se que as relações deles com o sexo feminino começavam sempre com “olhares lúbricos”.

Carlos Bobone