Pesquisar:

 

 

 

 

Raptores de crianças


Escultura RepúblicaRecorte “A Cidade”Recorte “A Cidade”A propaganda anti-jesuítica foi lançada a um público receptivo, sempre àvido de notícias bombásticas sobre a depravação dos jesuítas. Nos finais do século XIX já se constituíra uma abundante literatura especializada na “denúncia” dos inacianos, dirigindo-se a uma vasta e fiel clientela que viera enriquecer as hostes do partido republicano. Mas para conquistar tão larga audiência tornara-se necessário explorar todos os recursos da imaginação, ampliando-se constantemente o espectro das malfeitorias praticadas pelos “roupetas”. O público pedia sempre mais casos, mais escândalos, factos mais próximos e mais visíveis. A imprensa sentia grande pressão para ir além dos folhetins e das calúnias soltas.Em 1895 a iniciativa de alguns republicanos com vistas largas permitiu que se apresentasse ao público um escândalo jesuítico praticado no centro de Lisboa, à luz do dia, na presença de numerosas testemunhas.

Os jornais republicanos deram, em Agosto desse ano, larga cobertura às andanças de um, dois ou três padres jesuítas, que andariam pela zona do Rocio e Praça da Figueira a arrancar crianças às suas famílias.

Jornal A Federação

“Na terça-feira houve, em Lisboa, um grande alvoroço. As mães, os chefes de família, todas as pessoas de coração simples, revoltaram-se contra os jesuitas que andavam roubando creanças!”, noticiava “A Federação”. Seguia-se uma chuva de testemunhos, com os nomes das mães que haviam resistido às investidas dos clérigos, apontando-se a hora e a rua em que se dera cada tentativa de rapto. “A Vanguarda” contava até os diálogos de mães aterrorizadas com os sinistros roubadores de meninos.

“Os paes, loucos de terror, disposeram-se a defender os filhos estremecidos, empregando a força contra os roubadores de creanças”, asseverava “A Federação”. “Fallou-se em carros celulares, que percorriam a cidade para a apanha das creancinhas; em coupés de pessoas gradas, entregues a este serviço singular; jesuítas de longos casacos, chamando os filhos dos operarios

Alguns jornalistas a quem sobrava uma sombra de lucidez admiravam-se com a ousadia dos criminosos. Não duvidavam da inclinação jesuítica para o rapto de crianças, mas parecia-lhes que os inacianos poderiam encontrar melhor lugar e ocasião para essa actividade. “Então para que haviam de roubar creanças em Lisboa, o centro anticlerical do paiz, em lugares tão publicos como a Praça da Figueira e outros por ahi indicados?”
Sugeriu-se que poderia haver ali uma provocação dos reaccionários e dos clericais. Na dúvida, os activistas decidiram espancar os jesuítas que encontrassem na rua, actividade que se prolongou por alguns dias e veio a ser a consequência mais visível deste mistério.

“O segredo será por muito tempo, ou para sempre impenetravel”, concluía um jornalista.

Trinta e três anos mais tarde

Recorte “A Cidade”Foi preciso esperar mais de 30 anos para se dar a conhecer uma explicação que parece elucidar o caso do rapto de crianças. Em 1928 o Diário de Lisboa anunciava em letras grossas:

“Subsidio Historico – Desvenda-se o Misterio do “oleo humano” que os jesuitas extrahiam das creanças”.

Seguia-se a reportagem, que consistia na entrevista a um actor de segunda categoria, o qual confessava ter representado, nesse verão de 1895, o papel de jesuíta, por encomenda de um grupo republicano.

“O padre, não era padre. Era um seminarista de S. Bernardino, perto do Varatojo, que se alugou por 400 mil reis a uns tantos politicos para representar aquela comedia da Praça da Figueira. Está, felizmente, vivo e são; chama-se Alfredo Gamboa, é actor de seu oficio, e ele proprio conta a curiosa aventura em que se meteu.

(…) Fui apresentado a um grupo de republicanos de que fazia parte o jornalista Baptista Machado, da “Folha do Povo”, se não me engano. E vae, diz-me ele, a elogiar o meu liberalismo: “Você é que está mesmo na conta para o golpe que vamos dar, porque é um espirito desempoeirado, moderno, uma pessoa inteligente, capaz de compreender o largo alcance da propaganda em que andamos empenhados. A D. Amelia acaba de dar aos jesuitas o palacio da Rua da Mouraria para se estabelecer nele mais um convento … Consta que outras concessões lhes vai fazer; e nós, os homens que nos presamos de amar acima de tudo a liberdade, não podemos nem devemos consentir em tal.
- E então? Perguntei eu, a apoiar e apressar a conclusão.
- E então… você vai ajudar-nos a pôr em pratica um “truc” formidavel. É simples. O amigo Gamboa vai dar uma volta pela Praça da Figueira. A certa altura ha de cair uma criança a seus pés. Levanta-a, beija-a, acarinha-a, dá-lhe um tostão para rebuçados, e… pronto! Não é preciso mais nada … o capitão Dias, da Polícia, segura a multidão, se for preciso; a mulher que ha de levar a petiza tambem ganha cem mil reis… já vê que não ha perigo. Você, se não puder fugir, é preso e vai para a esquadra de carruagem. Depois, não se aflija, que alguem irá restitui-lo nesse mesmo dia à liberdade.
- E foi assim?
- Pouco mais ou menos. Mal o povinho desatou a querer malhar em mim por eu ter agarrado a meuda conforme se combinara, o capitão Dias, que estava a postos, avançou para o adjunto e prendeu-me para me dar fuga. Mas nem por isso deixei de sofrer tratos de polé. Da Praça da Figueira até à esquadra da rua dos Capelistas caiu sobre mim um diluvio de lixo e de calhaus. Pagaram-me bem, mas iam-me dando cabo da pele. A carruagem em que me levaram da rua dos Capelistas até ao Governo Civil, chegou lá esburacada, de tanta estocada que apanhou. “Abaixo a seita negra”, gritava a multidão atraz de mim. Abaixo o ladrão dos nossos filhos! – berrava o mulherio – Matem esse malandro! – sentenciavam os da turba, em frente da esquadra policial. – Meninos: eu dizia que se acabava o mundo com aquela enchente de bordoada!
- E depois?
- Depois… nunca se chegou a descobrir nada. O juiz Veiga, da Policia, tratou-me com extremos de delicadeza, e até me pediu desculpa pelo enxovalho”.
(Diário de Lisboa, 18 de Maio de 1928).

Carlos Bobone