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Um jornalista inglês na revolução


Valentine Williams, correspondente do “News-Chronicle”, chegou a Lisboa um ou dois dias depois da revolução de Outubro. Desembarcou do Sud-Express às três da manhã e encontrou uma cidade deserta. Havia sinais de bombardeamentos nas paredes dos edifícios e cadáveres abandonados sob as árvores da Avenida da Liberdade. No Hotel Avenida Palace não se achava ninguém a receber as visitas. Carregou as malas pela escada acima e instalou-se num quarto à sua escolha. Nos dias seguintes percorreu a cidade, assistindo a gloriosas jornadas revolucionárias. A caça aos padres e às freiras estava na ordem do dia.

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“Uma noite, estava eu a jantar no café Martinho quando passaram a correr pessoas vindas de várias direcções. Os padres, os padres! Gritavam. Contaram-nos que os padres do grande colégio jesuíta do Quelhas, não longe do centro da cidade, estavam a disparar sobre o povo do alto da torre da sua igreja. Eu conhecia um pouco dos jesuítas: pondo de parte outras considerações, não podia acreditar, nem por um momento, que clérigos da sua inteligência e craveira fossem tão imprudentes, atiçando a opinião pública no momento em que estava já tão inflamada. Várias carradas de patriotas, acenando com espingardas e pistolas, passavam nesse momento, e eu subi para um deles sem ser convidado, acompanhando-os para ver o que se passava.

O Quelhas, um grande conjunto de edifícios agrupados à volta de uma igreja e cercados por um alto muro, apresentava um espectáculo extraordinário quando finalmente lá chegámos. Havia soldados de cavalaria e infantaria por todo o lado; havia metralhadoras; havia mesmo peças de artilharia. E toda esta força militar estava desencadeada, num tiroteio desenfreado, contra o colégio que, a julgar pelo silêncio reinante do outro lado do muro, estava completamente abandonado. Mas isso não importava. As bombas fustigavam a torre, as metralhadoras disparavam sem parar, balas das espingardas silvavam entre as árvores. Não posso dizer por quanto tempo se manteve este intenso bombardeamento. Parecia que o cerco estava para durar e eu tinha dormido pouco desde a minha chegada a Lisboa, por isso escolhi um lugar aconchegado, encostei-me a um carro e estendi-me, adormecendo logo apesar do tiroteio.

Quando acordei os disparos tinham parado. Ouvi vozes do outro lado do muro – as tropas tinham entrado. Temendo ser impedido de entrar se passasse pelo portão, comecei a trepar pelo muro. Tinha-me pendurado pelas mãos quando senti os meus pés a serem agarrados e fui arrastado para baixo, onde me vi diante de um círculo de soldados que gesticulavam e trocavam impressões. Devo dizer que o meu pai morrera no mês anterior e eu, segundo o costume desse tempo, vestia um fato preto e gravata preta. Isto, junto ao facto de ter a cara rapada, foi prova suficiente para os patriotas que me rodeavam. Eu era, sem dúvida alguma, um jesuíta, um espião. Tinha o passaporte no bolso, mas nenhum dos meus captores sabia ler. Exigi que me apresentassem a um oficial, mas não havia nenhum nas proximidades. Tentei explicar que era um jornalista inglês, mas o meu português hesitante não chegou. Peguei então no meu guia de conversação Inglês-português, mas tudo o que encontrei naquele momento de agitação foi um colorido diálogo sobre a reparação de pneus de bicicleta. No meio de muita excitação fui arrastado até um grupo de lanceiros, uma corda foi atada aos meus pulsos, e, cercado por soldados de cavalaria, no melhor estilo da captura de espiões fui puxado ao longo do caminho que levava ao centro da cidade.

A certa altura um homem passou por debaixo dos cavalos e agarrou-me pelas orelhas, baixando-me a cabeça para ver se eu era tonsurado

Foi uma experiência que me ficou viva na memória. Percorremos grande número de pequenas ruas onde grupos de andrajosos de ambos os sexos, aglomerados nas esquinas, uivavam impropérios contra mim. A certa altura um homem passou por debaixo dos cavalos e agarrou-me pelas orelhas, baixando-me a cabeça para ver se eu era tonsurado – por sorte, sempre fui bem fornecido de cabelo no alto da cabeça. Passava muito da meia-noite e eu estava completamente à mercê de uma multidão altamente excitada que, cheia de ardor republicano, patrulhava as ruas de dia e de noite. Senti-me o actor principal de um daqueles filmes do Faroeste com cenas de enforcamento.

Foi com satisfação que cheguei incólume à sede do Governo Civil. Por sorte tinha já apresentado os meus cumprimentos ao Governador, que falava inglês. Puseram-me numa cela enquanto o chamavam (parece que ninguém dormia em Lisboa naqueles dias). Fui levado à sua presença, ele reconheceu-me e fui libertado com um pedido de desculpas.

De novo em liberdade, voltei ao Quelhas para ver o que se tinha passado. Apanhei um táxi e cheguei ao colégio quando estava a nascer o dia. O portão estava aberto e a multidão movia-se para todos os lados. O saque estava em curso, com grande frenesi.
O Quelhas era uma comunidade importante e inteiramente autónoma, com as suas oficinas e tipografias, e mesmo a sua adega, e daqui saiam grandes cargas. Encontrei famílias inteiras, homens, mulheres e crianças, saindo com todo o género de artigos que se possa imaginar – caixas de ferramentas, utensílios de cozinha, quadros, e até móveis. As primeiras tropas entradas tinham, notoriamente, encontrado bebidas alcoólicas: muitos dos soldados e guardas nacionais estavam bêbedos.

Na igreja testemunhei cenas que faziam lembrar episódios da Revolução Francesa. Soldados bêbedos, envergando vestes litúrgicas, estavam no altar, parodiando a celebração da missa. Na sacristia estavam homens e mulheres que rasgavam belos paramentos. Quando me viram gritaram: “Tudo isto pertence ao povo! Escolha o que quiser!”

O chão estava cheio de livros, (no mosteiro) alguns deles grandes tomos muito antigos, cujas páginas tinham sido arrancadas às mãos cheias.

A biblioteca da comunidade estava destroçada. O chão estava cheio de livros, alguns deles grandes tomos muito antigos, cujas páginas tinham sido arrancadas às mãos cheias. Este último espectáculo encheu-me de fúria. Conhecendo as tendências da revolução, reconhecera já que era inútil protestar contra sacrilégios e desacatos: Eu era estrangeiros e se os Republicanos Portugueses queriam ser anti-clericais, estavam no seu direito. Mas sabia que algumas destas bibliotecas monásticas albergavam preciosos tesouros; e tinha a certeza de que um governo liberal e iluminado se empenharia em conservar um armazém de sabedoria como a biblioteca jesuíta do Quelhas para benefício da ciência. Mal saí do colégio dirigi-me a casa do Dr. Bernardino Machado, Ministro dos Negócios Estrangeiros da nova república, tirei-o da cama – eram sete da manhã – e contei-lhe o que se passava. “Vossa Excelência deve, pelo menos, salvar os livros antes que seja tarde”, disse-lhe eu.

Mas não tinha contado com a altivez pedante do republicanismo académico. Sua excelência, um vigoroso e afável senhor de idade com uma grande barba branca, empertigou-se no seu pijama. “A propriedade desses patifes está sequestrada pelo povo Português”, declarou com a solenidade de um mocho. “O povo está no seu direito. Não há nada que eu possa fazer. Bom dia”.