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Juizes Castigados


juizes.jpg Nos últimos anos da monarquia o Partido Republicano encarniçou-se com desmedida violência contra o rei D. Carlos, subindo continuamente o tom das acusações contra ele, apresentando-o como um monstro de imoralidade, de avidez e cobiça. O caso dos “adiantamentos” serviu de pasto a uma infinidade de ataques, onde em variadas formas se despejavam insultos sobre o monarca: discursos inflamados, caricaturas, poemas, protestos públicos, censuras parlamentares, tudo servia para evocar a imagem do tirano insaciável. A imprensa republicana não se cansava de chamar ladrão a D. Carlos, atribuindo-lhe o propósito de defraudar os fundos públicos, explorar um povo miserável, extorquir a riqueza da nação em seu proveito. Mesmo depois da morte do rei tentou-se manchar a sua memória, levando a julgamento o primeiro-ministro João Franco e o seu ministro das finanças por terem facilitado a liquidação das dívidas da Família Real.

Chegados ao poder, os pontífices republicanos ordenaram um processo judicial contra João Franco e outros, por “dissipação de bens públicos” e vários outros crimes. Apresentada a acusação no Tribunal da Relação de Lisboa, não encontrou acolhimento favorável. Os juizes anularam todo o processo e mandaram arquivá-lo, o que acendeu a ira do governo e teve funestas consequências na carreira dos quatro magistrados.

A argumentação destes limitara-se a princípios gerais do direito: só se pode incriminar uma pessoa por actos definidos como crimes em lei anterior aos mesmos. Em Portugal não havia lei que determinasse a responsabilidade dos ministros pelos seus actos de governo. Várias vezes se haviam apresentado projectos-lei sobre a matéria, mas nenhum deles fora aprovado. Mesmo que fosse possível a acusação aos antigos ministros, esta caberia à Câmara dos Deputados, que estava dissolvida, não havendo ainda instituição que a substituísse. A acusação de João Franco fora já proposta ao parlamento pelo deputado Afonso Costa, em 1908, e rejeitada por grande maioria. Visto que a acusação fora já rejeitada pela única entidade competente para a apreciar, e tendo em conta as outras razões, consideravam os juizes que o tribunal da relação não era competente para apreciar o processo e mandavam anulá-lo.

A resposta do governo provisório abateu-se prontamente sobre os quatro juizes que deste modo desafiavam os intentos vingativos da República Portuguesa. Tomando a decisão de arquivamento como uma afronta à nação portuguesa, decretava o governo provisório, em 21 de Dezembro de 1910, que os prevaricadores fossem transferidos para o Tribunal da Relação de Nova Goa.

UM DECRETO EXEMPLAR

O decreto do governo provisório abria com um longo preâmbulo, onde era duramente atacada a atitude dos juízes, a quem se atribuíam malévolas intenções. Tinham-se eles insurgido “abertamente contra alguns principios essenciais da Republica Portugueza, taes como: a responsabilidade ministerial, a igualdade de todos os cidadãos perante a justiça, a incompatibilidade absoluta entre os crimes de desvios de dinheiros públicos e os abusos de origem ou caracter politico”. Mais ainda: “pretenderam desferir contra ella (a república) golpes audazes, que inutilizariam a justiça na sua propria essencia moral se pudessem ficar como regra ou mesmo sómente como exemplo”. Tinham agido como “juizes monarchicos, impenitentes adoradores da carta, contra os principios essenciaes da nova Republica. Elles quizeram innocentar, libertar dos simples incommodos das accusações criminaes, todos os ministros do antigo regime”.

O crime dos juizes consistia, pois, em haverem proferido uma sentença que ignorava os grandes acontecimentos ocorridos no país em 5 de Outubro. Aqui o decreto ganha um tom doutrinário, revelando a interpretação do governo provisório sobre o mandato que lhe fora confiado: os ministros do governo provisório tinham sido “acclamados pelo povo e não nomeados pelo rei”, o que lhes dava uma autoridade superior a qualquer outro poder, mesmo o judicial. “O Governo Provisorio, tendo recebido directamente da Nação a soberania sem limitação alguma, cabendo-lhe por isso todos os poderes do Estado, em vez de os conservar na sua mão, como era seu direito … apressou-se a reconhecer ao antigo poder judiciario … a plenitude da funcção de julgar”. Este acto generoso tornava mais grave a infidelidade dos juízes aos propósitos da república. Era o governo quem tinha autoridade para definir todos os princípios de organização da sociedade portuguesa.

 “Perante o simples facto da proclamação da Republica caiu tudo quanto na carta representava organisação do Estado, agora confiada pela Revolução, exclusivamente ao Governo Provisorio e à livre vontade dos eleitores”.

   Em conclusão de tudo isto, os juizes Abel de Matos Abreu, Basilio Alberto Lencastre da Veiga, Antonio Augusto Barbosa Vianna e Manuel Pereira Pimenta de Sousa e Castro deixavam de pertencer ao Tribunal da Relação de Lisboa e eram colocados nas quatro vagas existentes no Tribunal da Relação de Nova Goa.

Fonte: Barbosa de Magalhães e Pedro de Castro, Collecção da Legislação promulgada pelo Ministerio da Justiça durante o Governo Provisorio da Republica.

O PROTESTO DE FIALHO

Saibam Quantos - Fialho d’ Almeida

A transferência dos juízes inspirou uma indignada crónica de Fialho de Almeida, incluída mais tarde no seu livro “Saibam Quantos…” O autor de “Os Gatos” admirava-se da passividade com que a magistratura portuguesa recebera esta afronta, submissamente, sem protestos.

“O Governo Provisorio, precedendo denuncias e ameaças de um pasquim amarrado em  delator oficial dos desacatos à Republica, acaba de transferir para a Relação de Goa (India Portugueza), os juizes que pronunciaram a inculpabilidade de joão Franco e Malheiros Reimão em todos os actos da chamada dictadura franquista.

Dias antes, e tambem por denuncias do mesmo pasquim, transferira para os Açores um juiz acusado de… jantar com o ex-ministro franquista Teixeira d´Abreu!

Corre que outras medidas de violencia serão tomadas no sentido de desarmarem pelo terror as massas de cidadãos que não adheriram à Republica (inumeraveis), e permaneceram onde estavam, visto não quererem ser tachados pelos jornaes do governo, de canalhas e de infames, que foi o que sucedeu às que adheriram.

Esta fraternidade da Republica eguala os sentimentos de liberdade e d´egualdade a que assistindo vimos, desde o inicio.

Esperava-se, valha a verdade, que a magistratura em massa protestasse contra os insólitos decretos de desterro dos quatro juizes, decretos que acatados põem um precedente mais violento do que as reprezalias do governo de João Franco contra os revolucionarios de 28 de Janeiro; e pode-se dizer, levarão os juizes à coacção de d´oravante julgarem só pelo criterio dos rancores ministeriaes, não podendo até jantar senão com quem o snr. Affonso Costa dê licença” (…)

Seis meses depois, em Junho de 1911, o governo, sem justificação alguma, mandou regressar a Lisboa os juizes removidos para Nova Goa. E a 13 de Julho o Supremo Tribunal de Justiça anula definitivamente todo o processo contra João Franco.

Carlos Bobone