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As primeiras eleições da República vistas de perto


O escritor e jornalista Carlos Malheiro Dias foi uma das poucas inteligências críticas que acompanharam os primeiros passos da república, sem ilusões, mas também sem brados de amargura. Monárquico sem o desânimo dos derrotados, descreveu com a minúcia de um espectador atento a transição dos regimes e os primórdios da nova idade, distinguindo com observação incisiva a distância entre a república propagada e a república real. Valeu-lhe, para poder expôr aos olhos de todos a vida íntima do novo regime, o prestígio alcançado já no campo literário com os seus romances, e sobretudo a  condição de correspondente de jornais brasileiros, que dava certa imunidade à sua escrita. 

Do Desafio à Debandada - O PesadeloDescrevendo as primeiras eleições republicanas, Malheiro Dias mostra que no meio da exaltação revolucionária é possível manter o espírito claro e fazer uma apurada análise política:

“A Republica elegeu e proclamou – pois que deputados ha eleitos pelo suffragio e outros proclamados sem eleição nos circulos em que os candidatos do partido republicano não tiveram de disputar a candidatura a esporadicos elementos oposicionistas, - os representantes da nação às Constituintes. Vae, finalmente, ao termo de oito meses de dictadura revolucionaria, votar-se uma Constituição, que habilitará o regimen com o diploma politico fundamental exigido para o reconhecimento das potencias da Europa.

(…) Pelo modo como se concertaram e realizaram, as eleições não podem considerar-se um modelo de prática democratica, antes o derradeiro reflexo do anarchico e arbitrario despotismo revolucionario. Organizou-as uma lei dictatorial de occasião, defeituosa e interesseira, redigida sob o criterio opportunista e cauteloso de defender a Republica contra os seus ainda numerosos adversarios. Effectuaram-se num periodo de anormalidade manifesta, sem quaesquer garantias de liberdade, com os direitos de reunião reprimidos, a expressão do pensamento ameaçada. Considerá-las eleições nacionaes, é um sarcasmo insolente. Nenhum deputado monarchico se apresentou a disputá-las. O eleitorado da antiga monarchia – ainda numeroso, apesar das deserções soffridas – não concorreu às urnas. Votaram os republicanos nos republicanos. Foi a eleição de um partido; não a eleição de um paiz. A engrossar as fileiras dos republicanos historicos veio o funccionalismo do regimen e as praças do Exercito e da Armada. Alargados no sentido de uma mais larga representação popular, os recenseamentos facilitaram a grande numero dos elementos republicanos, até agora sem participação no suffragio, o accesso das urnas. Destas circunstancias conjugadas resultou que a votação republicana em Lisboa e no Porto reuniu um numero de votos consideravelmente superior aos obtidos pelo mais votado candidato das ultimas eleições da monarchia. Deste facto extrahiram os jornaes affectos ao regimen conclusões tendentes a provar impressionantemente que a idéa republicana se desenvolvera numa invasão triumphante, levando adeante de si, na sua onda impetuosa e irresistivel, os fragmentos derradeiros da esboroada realeza e submergindo na sua torrente caudalosa e sonora os ultimos debeis gemidos da esperança monarchica agonizante.

Presumpção; subtileza; mentira!

Para se chegar de boa fé a taes conclusões indispensavel seria que por todo o paiz, em eleições liberrimas, o suffragio demonstrasse, na sua relação com a capacidade do recenseamento, que uma maioria absoluta de eleitores apoiara o regimen com os seus votos. Tal não se viu. Dos 50 circulos por que se dividiram as assembléas eleitoraes do paiz e ilhas adjacentes, só em 22 circulos se realizou o acto electivo. Nos restantes foi impossivel aferir da importancia dos elementos eleitoraes republicanos. Não houve eleição. Evitou-a uma disposição da lei de 15 de março com maliciosa, precavida prudencia, determinando que seriam para todos os effeitos considerados eleitos os candidatos aos circulos onde não houvesse opposição estrictamente legal e devidamente legalizada. Manha digna do astucioso Ulysses, pois que ao mesmo tempo que impedia se revelasse indiscretamente o desapego das provincias de Além-Mondego pela Republica, evitava ensejos para conflictos, reduzindo enormemente as probabilidades de desordem. A habilidade estava, depois de haver creado aos monarchicos insuperaveis obstaculos na concorrencia eleitoral, fechando-lhes virtualmente o accesso ao terreno da lucta, em difficultar a approximação das urnas aos elementos indisciplinados do proprio partido, aos que dentro delle arvoravam já alguns pendões de discordia.

AS ELEIÇÕES EM LISBOA

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E taes foram, por tal modo sibylinas na sua interpretação, por tal maneira enygmaticas na sua redacção, por tal arte difficeis na sua execução, as medidas postas em prática pela lei eleitoral de março, a fim de monopolizar as eleições em beneficio das candidaturas officiaes, que na propria Lisboa as listas radical e socialista eram rejeitadas, para só ser acceita a lista sanccionada pelo Directorio, de onde resultava o não se proceder na capital do paiz ao acto electivo, conservando-se as urnas fechadas, a despeito de a ninguem ser licito desconhecer que havia opposição e que esta se não manifestara apenas porque as autoridades da Republica, no cumprimento meticuloso da lei, terminantemente a impediam.

Desta vez porém a reacção deu-se, violenta. Não poude evitar-se o choque entre a tyrannia do governo e as noções mais elementares e divulgadas da liberdade e do direito. Ao abalo desta reacção acordou grande parte dos que dormiam e foi restituida a vista a multidões de cegos. Muitas foram as consciencias que nessa hora condemnaram as divindades da Republica, sem pensarem que os seus excessos eram desculpaveis em quem tinha a missão de defender a todo o transe um regimen apenas recemnascido e exposto a inilludiveis perigos.

Nada que mais se pareça com a truculencia da tyrannia do que a infancia de uma democracia. A celeuma originada pela demonstração prática da lei eleitoral vinha deploravelmente tarde. A não ser “O Dia”, que a analysara e estygmatizara desde a sua publicação, nenhuma voz se erguera na imprensa para a verberar como o desmentido impudente de todos os principios democraticos. Foi só quando surgiram 91 deputados – o numero de representantes às Constituintes era fixado em 230, - proclamados sem eleição, e quando, excluidos os candidatos radicaes e socialistas propostos por Lisboa, já se consideravam eleitos sem votação os vinte deputados da lista official da capital, que os illudidos, dando com o ludibrio, reagiram contra o despotismo do Directorio e contra os ardis do diploma governativo de março,
Mas por tardia, a reacção não perdeu em intensidade.
Com o titulo “Não ha eleições” e o sub-titulo “A cidade de Lisboa privada de votar pela Republica”, o jornal da noite “A Capital” publicava já no seu numero de 19 de maio um primeiro artigo violentissimo (…)

No dia 21, os republicanos radicaes distribuem um manifesto, em que a questão é exposta nestes termos inquietantes (…)

Negar a gravidade de tão alto clamor seria inconsciencia. No dia 20, o “Intransigente” publicava esta declaração, eloquentemente significativa, do chefe militar da Revolução, do homem mezes antes acclamado como o heróe da Republica e o bemfeitor da Patria:

“Antonio Maria de Azevedo Machado Santos declara que não lhe agrada a fórma como o consideram eleito representante do povo de Lisboa à Assembléa Nacional Constituinte (…)”  

Perante o alastrar alarmante da indignação publica, excitada pelos elementos adversos ao regimen, o governo, que aos baldões da opinião e ao sabor das circumstancias já alterara algumas das disposições fundamentaes da lei, indo, no caminho das concessões, até à generosidade inqualificavel de fazer de cada soldado um eleitor, decreta o prolongamento dos prazos para a legalização do processo de candidaturas e assim facilita à última hora o accesso das urnas ao partido socialista – que se viu não contar com elementos numericos de valor, antes accusar uma ausencia de organização deploravel – e aos chamados republicanos radicaes e independentes.

Carlos Bobone