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A noite sangrenta II


19 de Outubro de 1921

Parte 2

 

A Seara Nova e o 19 de Outubro

O nº2 da Seara Nova saiu a 5 de Novembro e trazia, sobre a noite sangrenta, um artigo de Raul Proença e uma adenda de Jaime Cortesão a um artigo seu (A Crise Nacional), que apresentamos noutro local.

A Seara Nova apresentou-se sempre como a opinião daqueles que queriam ter uma opinião que não fosse apenas um interesse camuflado. Para ela o país era um lamaçal de corrupção, a grande imprensa como o Diário de Notícias e O Século, apenas servia a oligarquia financeira e o resto dos jornais era um mero instrumento de partidos comprometidos na corrupção.

Os seareiros seriam a revolta dos intelectuais de esquerda contra o regime. Mas intelectuais de diversos quadrantes também desprezavam o regime republicano. Curiosamente, e apesar da polémica de Raul Proença contra o Integralismo Lusitano, em Dezembro de 1923 apareceu a Revista dos Homens Livres que congregava seareiros (António Sérgio, Raul Proença e Jaime Cortesão), integralistas (António Sardinha e Pequito Rebelo), o monárquico conservador Carlos Malheiro Dias, o ex-franquista Agostinho de Campos, o sebastianista Afonso Lopes Vieira (que pretendia «aportuguesar» Portugal) e muitos outros, numa miscelânea heteróclita, todos unidos contra «a finança e os partidos».


António Sérgio, ao escrever nessa revista, na nota de abertura, propunha a procura «duma ideia nacional, de uma finalidade portuguesa, anterior e superior às finalidades partidárias». Numa tentativa de justificar a união de todos aqueles intelectuais de tão diferentes e opostos quadrantes, acrescentava que «a grande linha divisória, nestes nossos dias, não é a que separa as direitas das esquerdas; é, sim, a que distingue […] os homens do século XX dos homens do século XIX». A «nação», entidade que Sérgio define como um fim e não como uma realidade existente, deveria ser o quadro desta confluência de opiniões. Nenhuma destas opiniões diferencia António Sérgio de intelectuais de direita, ou mesmo fascistas, que emitiam então opiniões semelhantes.
Mais tarde, na revista Lusitânia (1924-1927), dirigida pela figura prestigiada e consensual de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, seareiros e integralistas voltaram a colaborar nesse mesmo objectivo de «enquadrar-se no grande movimento de recriação do espírito da pátria».Quando toda a elite cultural de um país, da direita à esquerda, se une contra um regime, que despreza, há certamente algo de muito errado e muito maléfico nesse regime.É certo que um seareiro, António Sérgio, foi tentado pelo poder, e chefiou o Ministério da Instrução no governo de Álvaro de Castro, a partir de Dezembro de 1923, experiência que, aliás, só durou dois meses. A Seara Nova prometeu então manter no Governo «a nossa atitude da oposição». Ora esta é uma posição absurda. Não é possível, nem sério, estar num governo e ser simultaneamente opositor desse governo. Governar obriga a concessões, mas os seareiros que detinham, segundo eles, o monopólio da razão não eram adequados a quaisquer concessões. Na maioria dos casos estariam eventualmente certos, como a tentativa de António Sérgio em obrigar a que os funcionários do seu ministério cumprissem os horários, medida que foi altamente impopular e polémica (!?). Aliás o governo caiu sob a ameaça de greves do funcionalismo.Depois da implantação do salazarismo, a Seara Nova, e os líderes republicanos, em Portugal e no exílio, dedicaram-se à piedosa tarefa de branquearem a 1ª República. Os motivos podem concitar muita simpatia. Lutava-se contra a Ditadura e os seus opositores sentiam-se na obrigação de defender o regime da 1ª República que era o que tinham de palpável, o único exemplo nacional que poderiam opor ao regime ditatorial. Mas o facto é que esse branqueamento era falso e era uma mistificação histórica. A 1ª República havia concitado contra ela todas as forças do país. Os últimos líderes republicanos, principalmente António Maria da Silva, eram unanimemente execrados pela sua baixa estatura ética, caciquismo eleitoral, corrupção, etc.. A 1ª República caiu e afundou-se no mar de lama que ela mesmo tinha produzido.Condenada por todos, a 1ª República cairia sempre e em qualquer circunstância. Todos, desde a Seara Nova à Cruzada Nun’Álvares pediam a Ditadura. Não se referiam, certamente, ao mesmo tipo de Ditadura. Mas quando ela apareceu, começou por ser uma ditadura de republicanos moderados (Mendes Cabeçadas) para rapidamente passar para as mãos da direita e depois de Salazar.

19 de Outubro de 1921

Parte 3


 

Raul Proença e Jaime Cortesão sobre o 19 de Outubro de 1921

Estes dois textos a seguir apresentados são reveladores das contradições dos seareiros. Por um lado, simpatizavam com o movimento, «por melhores que sejam as intenções dos seus dirigentes», por outro lado ficaram estupefactos de horror perante o seu desfecho. Mas mesmo na descrição dos horrores, Cortesão, aliás então bastante próximo dos anarquistas, escreve: «Os crimes da noite de 19 de Outubro, que vitimaram desde um presidente de ministério a um operário». Um 1º Ministro, e os outros altos dirigentes, não eram vítimas suficientes para tamanha repulsa. Era importante acrescentar … «um operário».
Simultaneamente o disparar em todas as direcções, meter no mesmo saco tudo e todos, só servia (e serve) para branquear as verdadeiras causas, cujo enunciado todos temiam, pois todos estavam, quer directa, quer indirectamente, implicados.
Os Últimos Acontecimentos
Mais uma vez a mais perigosa das utopias levou este país à epilepsia da desordem, já o tínhamos previsto. Nem foi surpresa para ninguém. Desta vez, porém, a impotência do movimento revolucionário revelou-se tão formidável, que eu julgo-o de incontestável beneficio educativo para o país. Ele lançou talvez o definitivo descrédito sobre o processo. Pôs a claro as ilusões que o determinaram, as mentiras em que se baseia, as consequências que traz consigo. E’ um processo em franca liquidação Não cremos que ele possa tornar a arrastar grandes massas de homens; e aos que nos perguntavam no dia seguinte à revolução se ela tinha sido o triunfo da Seara Nova, nós poderíamos ter respondido que sim: pois que contribuirá, mais do que nenhuma outra, para demonstrar que só uma profunda acção educativa e social poderá trazer a este povo os benefícios que ela até agora tem esperado do motim e das revoluções improvisadas. A tese da Seara Nova recebeu mais uma confirmação. A gravidade dos factos compreendemo-la, mas não nos deixamos vencer por ela. Não cremos que seja este o último dia da nossa vida, e o dia de amanhã só tem— quem sabe?—que lucrar com as tristezas e as misérias do dia de ontem. Aprenderemos, fatalmente teremos que chegar a aprender à custa dos nossos desatinos e do nosso sangue. Experiência dolorosa, trágica, mas nem por isso menos salutar e necessária.Não duvidamos das boas intenções dos organizadores do movimento revolucionário que acabou de se produzir. Simpatizamos com muitas das ideias do seu programa. Coincide em muitos pontos com a nossa a sua orientação política Não podemos deixar de reconhecer a nobre e dolorosa verdade que há na sua condenação de todo o passado da Republica. Mas já no primeiro numero da nossa revista afirmámos duma maneira categórica que «todos os processos de assalto revolucionário, em que o poder é tomado por surpresa, Sem o esclarecimento prévio do país sobre as intenções dos seus dirigentes, só poderão esperar da nossa parte, e sejam quais forem os princípios de que pretendam inspirar-se, a mais formal e indignada condenação »
Não temos de alterar uma só palavra ás afirmações que fizemos. Continuamos a acreditar que o país só poderá salvar-se depois duma profunda conversão das consciências, duma renovação da mentalidade, dum vasto movimento democrático em que todas as soluções sejam debatidas, esclarecidas e vulgarizadas; numa palavra, depois que se conquiste para um dado plano de reformação uma opinião publica perfeitamente consciente de si mesma, que permita a solução viável e segura de todos os problemas, sem receio de que, dum momento para o outro, falte aos «salvadores» a base da sua acção política. Continuamos a julgar que é um crime decidir da surte do país sem o país ser esclarecido e consultado Continuamos a rotular de «môsco» político o sistema que consiste em abrir as portas do Terreiro do Paço, na calada da noite, pela gazua das revoluções. Queremos fazer a revolução que pregamos à luz do dia, por processos enérgicos, mas pacíficos, em que toda a consciência nacional colabore, e não admitimos nela os criminais-natos que buscam nos movimentos revolucionários uma derivante aos seus instintos antisociais e a satisfação das suas perversas tendências destruidoras.

E a verdade é que, quando um movimento sedicional se produz nas circunstancias do actual, por melhores que sejam as intenções dos seus dirigentes, a baixa vasa humana dos sectários acha neles ocasião asada para exercer os seus instintos de morte e de rapina. Uma meia dúzia de homens caiu varada pelas balas dos assassinos. Prosternemo-nos perante os seus cadáveres. Choremos sobre todos eles as desditas da Pátria. Não perguntemos qual foi a sua política, quais os! seus erros, e os seus nomes Não nos atrevamos sequer a fazer distinções. Foram homens que caíram, vitimas dos erros e dos crimes de nós todos –dos deles próprios também. Vitimas de tudo o que fizemos e do que não fizemos; do que dissemos e do que calámos; do que praticámos e do que consentimos; do nosso egoísmo e do nosso silencio; da ignorância profunda em que deixámos o povo; da nossa falta de ideal, de espírito democrático e visão total das realidades. O sangue dos que caíram deve tingir as mãos de nós todos; e a sua ultima agonia devemos senti-la todos na garganta.

Nos lamentáveis sucessos cabe grande parte de responsabilidade aos dirigentes da Revolução. Porque o mais grave do caso é que podem não ter sido propriamente uns facínoras os homens que mataram António Granjo. Soldados broncos, sem nenhuma espécie de cultura, sem a menor noção das questões políticas e do grau de responsabilidade dos políticos nas desgraças nacionais, talvez julgassem que, se estavam empenhados, eles, soldados da Ordem, em fazer uma revolução contra o governo dum determinado homem, é porque esse homem era um criminoso culpado dos delitos mais graves. Exercendo esse selvagem morticínio, porventura eles teriam julgado praticar um acto de justiça sumaria. Dura e tremenda lição para os que, de aqui em diante, se lancem em movimentos revolucionários que podem armar, como este, os braços dos assassinos - dos que matam pelo prazer de matar ou pelo desejo de desforra, ou dos que assim praticam por considerarem tais actos perfeitamente justificados dentro da lógica e da moral revolucionarias.

O que vai sair de aqui? Quem é bastante estulto para esperar a salvação? Quem acredita ainda nas fraudes revolucionarias? Quem esperará ver nos ministérios que imediatamente se seguirem outra coisa que não sejam ministérios de simples expediente administrativo? E isto quando a força das coisas e a própria lógica das circunstancias nos não levarem para uma ditadura militar, com toda a opressão do sistema militar, e o predomínio dos interesses militares.
Nós, que fizemos o voto de dizer toda a verdade, e de conservar sempre acesa a sua chama luminosa, levantamos a nossa voz de protesto e acusação. Acusamos os de ontem e os de hoje. Os que já fizeram o mesmo e agora condenam nos outros, e os que, para corrigir os erros passados, começam por seguir os métodos do passado. Acusamos os partidos da oposição que conheciam o que se ia passar, e nada fizeram para evitar a catástrofe. Acusamos os que fomentaram todas as desordens, os que fizeram silencio sobre todos os desvarios demagógicos (Afonso, Sidónio e tantos outros), que não tiveram uma palavra de condenação e de proscrição para os miseráveis que, dizendo-se seus partidários, desmentiam todos os sentimentos da humanidade. Acusamos os potentados da finança, os últimos dos pervertidos morais (exploradores, especuladores, açambarcadores, falsificadores, inimigos do Povo, criminosos sacrílegos) que vivem de sugar todo o sangue da nação pelas ventosas da sua ambição desmedida. Acusamo-nos a nós próprios por só agora termos tido este grito, por só agora jogarmos a bem da nação o nosso próprio destino.

Desanimamos definitivamente? Não, cremos ainda. E sobretudo cremos na mocidade, que nós subtrairemos ás ilusões sub-humanas do snobismo, por ser ela aquela parte da nação que melhor pode compreender o nosso gesto e as nossas palavras, por não ter feito ainda do coração a lama asquerosa onde vegetam os baixos sentimentos do egoísmo e da rapina. Compete à mocidade portuguesa o destino mais belo do mundo: fazer duma nação vergonhosa, presa ao vilipêndio de todas as nações, uma nação humana e digna, capaz de se instituir em exemplo de virtude e de trabalho. Que a mocidade responda ao nosso apelo; siga o nosso exemplo; diga como nós: Basta! E como nós se lance na grande aventura de dar à Pátria a salvação. Só assim o sangue dos mortos fecundará a terra em que que nascemos!

20-Outubro-1921. R. P.

Em aditamento ao seu artigo «Crise Nacional» Jaime Cortesão escreveu:
Nota. —Tínhamos escrito estas palavras, antes dos últimos acontecimentos revolucionários. Não temos que alterar uma única. Ao contrario, aqueles factos vieram confirmar e agravar muitas das nossas afirmações. Cremos, ao invés dos dirigentes revolucionários, que a crise nacional se agravou temerosamente nestes dias. A boa vontade dos homens não pode modificar dum dia para o outro os vícios e defeitos, que representam a obra e a infiltração dos anos ou dos séculos.Referimo-nos atrás ao desfecho que a crise nacional fatalmente há de ter, se a tempo não nos emendarmos:—«depois dalguns dias de desordem sanguinária, em que todos, todos temos a perder, a tutela estrangeira, clara ou disfarçada». Não estávamos, todavia, convencidos que os factos viessem confirmar tão completa mente essas palavras. Os crimes da noite de 19 de Outubro, que vitimaram desde um presidente de ministério a um operário, seguidos dos «desejos» do corpo diplomático devem bastar como sinal e amostra, para convencer os mais incrédulos da inadiável urgência de mudar inteiramente de caminho.

JAIME CORTEZÃO

Publicado por Joana em Outubro 19, 2004 no Blog Semiramis