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As Duas Propagandas


No verão de 1910 o Partido Republicano Português enviou uma delegação a várias capitais estrangeiras com a missão de preparar a opinião europeia para a mudança de regime em Portugal. O fim em vista era tranquilizar os meios influentes da política, da finança e da imprensa, seduzir a “opinião moderada”, combatendo a imagem de radicalismo que se colara aos republicanos portugueses. Escolhidos pelo porte distinto, pelas boas maneiras e pelas relações influentes que haviam conquistado no estrangeiro, Magalhães Lima e José Relvas, que se juntaram em Paris a Alves da Veiga, aplicaram-se à sua missão com o espírito de verdadeiros diplomatas, difundindo pela imprensa europeia um comunicado que pretendia acalmar as inquietações das classes abastadas, garantindo que uma mudança de regime nunca seria em Portugal uma convulsão violenta, pois não havia nada que o justificasse. Para dar força a esta ideia não hesitaram em inverter a linha da propaganda oficial do partido. Em vez de falarem do povo oprimido e reduzido à miséria, da “pátria agonizante”, da doença, do desamparo, da fome,do desespero, do “ódio santo” que os miseráveis iam alimentando contra aqueles que os espoliavam, preferiram um tom francamente mais optimista, a visão sorridente, idílica, serena, de uma nação que navegava em plena prosperidade e só esperava a mudança de regime para atingir a felicidade final. Escondiam-se todos os temas que pudessem revelar, da parte dos revolucionários, motivo para ressentimentos. Ficavam na penumbra os queixumes que alimentavam a propaganda republicana desde o período do ultimato. As personagens que povoam o “finis patriae” de Guerra Junqueiro – a pobreza, os lares sem pão, os campos abandonados, os monumentos arrazados, as escolas em ruínas, a morte prematura, a doença sem amparo, as lareiras sem lume, os quartos sem luz, os trabalhadores conduzidos à doença, à morte ou ao alcoolismo, as cadeias cheias de inocentes, todos eles ficavam recolhidos em local oculto até uma ocasião mais oportuna.

Sebastião Magalhães Lima

Sebastião Magalhães Lima

De momento importava difundir uma imagem de tranquilidade e para isso o P. R. P. estava disposto a assinar o manifesto que foi publicado nos “grandes quotidianos de Paris, Londres, Berlim, Roma, Madrid, Rio de Janeiro e Nova Iorque”, garantindo a próspera condição material e moral do povo português. O país trabalhava, fazia progressos, mostrava-se enérgico e criativo. Em todos os ramos da economia os resultados eram animadores. Nada disto se devia aos méritos do governo ou da dinastia reinante. Pelo contrário. O partido republicano garantia a existência de um divórcio entre este povo tão empreendedor, tão enérgico, tão criativo, e os que o governavam, sendo estes um empecilho para o desenvolvimento harmonioso da nação. O único problema do país era, pois, de natureza política, e facilmente se removeria com uma revolução pacífica e benfazeja. 

A larga difusão desta “nota oficiosa” não provocou celeuma alguma no interior do partido. As suas afirmações, embora opostas à linha propagandística do movimento republicano, foram entendidas como uma necessidade estratégica e não afectaram em nada o crédito daqueles que continuavam a proclamar a agonia da pátria e do povo. Guerra Junqueiro mantinha o estatuto de poeta oficial do partido e pouco depois era nomeado embaixador da república junto da Confederação Helvética. Os dois agentes da ofensiva europeia, José Relvas e Magalhães Lima, entenderam que tinham prestado um alto serviço à república, e no final dos seus dias cada um deles incluiu nas memórias que deixou a transcrição literal do famoso manifesto, em que se podem ler estas reconfortantes palavras:

“O país trabalha, quer progredir, e aguarda com impaciência o advento de novas instituições que sejam inspiradas em ideias e sentimentos patrióticos. Possui todas as condições para criar uma nova existência, assim como um belo futuro.

A agricultura, sua principal força económica, está, apesar de tudo, em progresso. A indústria desenvolve-se consideravelmente, o que se verifica na iniciativa de novas empresas e no progressivo aumento da importação de matérias primas. O seu comércio cria todos os dias novos mercados. Daqui resultará o mais sério desenvolvimento, assim que forem assinados novos tratados de comércio. São conhecidas as suas maravilhosas colónias em áfrica, das quais só o entreposto de Lourenço Marques, pela sua posição em relação aos Estados do sul, assegura aos interesses comerciais, agrícolas e industriais de Portugal um mercado excepcional.

A província de Angola, quando tiver uma administração política inteligente, verdadeiramente patriótica, tornar-se-á uma fonte de riqueza, um elemento de prosperidade nacional…”

(Magalhães Lima, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, Vol. 1.
 José Relvas, Memórias Políticas, Vol. 1) 

Apesar deste acesso de moderação, o tema do país miserável continuou a ser largamente explorado até à exaustão, no combate pela mudança de regime. Sempre que se falava dos adiantamentos à família real realçava-se o contraste entre a riqueza dos príncipes e a pobreza da nação. Assim se continuou a alimentar o mito do povo ultrajado, que esperava o dia da justiça, o “dies irae” de que fala a Bíblia. O tema do “ódio santo” e do “dies irae” é tão frequente na literatura republicana, que ainda nos nossos dias um professor catedrático de história, especializado na época da primeira república, dedica toda a primeira parte de um livro seu (Oh a República!) a esta matéria, surpreendendo-se por não ter sido mais violento o “dies irae”, quando finalmente se implantou a república. Se tivesse lido com mais atenção os manifestos europeus do Partido Republicano, talvez reconhecesse haver razões para duvidar da sinceridade dos queixumes que alimentaram os comícios, os jornais, os panfletos e os discursos parlamentares durante duas décadas, e assim ficaria mais disposto a aceitar o espírito conciliador de uma parte dos vencedores do 5 de Outubro.

Carlos Bobone