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A Plataforma do Centenário da República em entrevista


Por reflectir em grande medida as linhas editoriais e a estratégia politica deste projecto transcrevemos aqui uma entrevista da jornalista Cláudia Baptista sobre o projecto Plataforma do Centenário da República publicada na revista Homem Magazine de Novembro de 2008:

HM - Quem são João Távora e Carlos Bobone, principais animadores da plataforma do centenário da república?

R: Somos dois cidadãos da república portuguesa que tiveram a ideia de viajar até às origens do regime que nos tutela e ficaram fascinados com esse mundo tão desconhecido e tão diferente do nosso. Achámos que a experiência merecia ser divulgada e pusemo-nos ao trabalho, reunindo documentos, jornais, livros e fotografias que dão um panorama do que se passava e pensava na época da implantação da república. Não temos passado político.

HM - Em que principais aspectos acham que a história da república está mal contada?

R:  Os aspectos mais repressivos e impopulares da história da república encontram-se protegidos por um manto de pudor que os protege de olhares indiscretos. Parece haver partes da história que não se devem desvendar, tal como há partes do corpo que se escondem dos olhares exteriores. Na história de Portugal a linha que demarca o pudor acaba em 1926. A partir daí expõem-se todas as “vergonhas”. Qualquer cidadão minimamente instruído conhece o aparelho repressivo do Estado Novo, e se tiver dúvidas a esse respeito encontra abundantíssimo material para seu esclarecimento: livros, revistas, catálogos de exposições, actas de colóquios, testemunhos públicos e privados explicar-lhe-ão o que se passava a respeito de censura, polícia política, eleições e oposição.
 Quem dirija a sua curiosidade para os primórdios da república recebe um tratamento bem diferente. Não só terá de fazer sozinho a maior parte do trabalho de pesquisa, consultando jornais, folhetos, testemunhos da época, como encontrará pelo caminho obras recentes que o induzirão em erro, por vezes com o patrocínio do Estado Português. Se quiser saber, por exemplo, qual era a situação da imprensa durante esse período, arrisca-se a comprar, no Museu da República e da Resistência ou na Biblioteca da Assembleia da República, um livro muito bem ilustrado, onde lhe dirão que a república trouxe consigo uma nova era de ampla liberdade de imprensa, interrompida esporadicamente pelos efeitos da primeira guerra mundial e pela necessidade de defesa contra as agressões monárquicas. Mas nas próprias ilustrações do livro encontrará motivos para duvidar do optimismo do texto. 

HM - Perseguições, políticas, fraudes eleitorais e perseguições à imprensa são algumas das acusações feitas. Como explicam que até hoje não tenham sido devidamente denunciadas?

R: No princípio encontra-se uma boa porção de facciosismo, depois a situação de “encobrimento” prolonga-se, sustentada na inércia, no comodismo e no muito respeitinho pelas instituições vigentes.

Durante décadas, escrever a história da república equivalia a um acto de fé contra o Estado Novo. Quem se debruçava sobre esse período eram jornalistas de temperamento combativo como Carlos Ferrão e Raúl Rego, que viam nos seus livros o prolongamento de polémicas da imprensa contra os “monárquicos” e os “nacionalistas”. As obras deles eram comemorativas e justificativas da república, sem disfarce algum. Cada frase que escreviam constituía um argumento a favor do regime caído em 1926. Procuravam, acima de tudo, calar os inimigos da república, reduzir a pó os argumentos dos que a atacavam. Essa fase foi ultrapassada e a investigação académica produz hoje em dia literatura abundante, muito especializada, sobre aspectos parciais da vida da república. Mas os conceitos definidos nas primeiras gerações continuam a impor-se com uma certa força, não só no meio académico mas também naquelas instituições que têm por missão defender a memória do regime: museus, bibliotecas, ministérios e parlamento.

Uma das mais persistentes ideias que se colaram à imagem da república é a de um regime democrático perturbado pelas ditaduras de Pimenta de Castro e Sidónio Pais. Na história da república tudo parece impreciso, só os períodos ditatoriais são definidos com precisão, como se houvesse uma nítida fronteira entre as ditaduras e o que se lhes  antecedeu ou seguiu. Depois de definidos estes períodos de ditadura, inclui-se tudo o resto no conceito de democracia. Todos os políticos que se opuseram aos “ditadores” são classificados como “genuínos” ou “lídimos” democratas, o que pode parecer lógico mas exige muita distracção na forma como se apreciam os acontecimentos. Um governante pode ter proibido a circulação de jornais, pode ter mandado prender monárquicos, pode ter organizado eleições sem oposição, pode ter transferido juízes para os confins do império, pode ter tirado o voto aos analfabetos. Tudo isso lhe será descontado na biografia se ele se tiver oposto aos “ditadores” Pimenta de Castro e Sidónio Pais. E não é raro vermos exposições ou homenagens públicas onde se exalta o percurso de um destes heróis da república, elogiando-se a sua postura de oposição a todos os “totalitarismos”. Estes rótulos são usados à laia de biografias, dispensando mais amplas indagações.  

No ensino escolar, onde predomina a falta de espaço para explicações coerentes, a república é despachada em meia dúzia de frases, cujo objectivo é justificar a curta vida do regime sem lhe manchar a imagem. E encontram-se textos notáveis pela concisão, como o de um manual de História do 11º ano, publicado pela “Asa”, onde se conta que a república resvalou para a ditadura do Estado Novo porque a constituição de 1911 era “excessivamente democrática”, permitindo que mudassem os governos “por dá cá aquela palha”, o que lhe deu uma grande instabilidade: 48 governos em 16 anos.

Devemos reconhecer que a república portuguesa não se encaixa facilmente num manual escolar. As suas contradições, os fantasiosos temas em que se concentrou a sua propaganda, pedem explicações complexas e demoradas. Logo na primeira época do republicanismo, a da propaganda, se manifestam as dificuldades: como explicar que um partido revolucionário escolha para seu inimigo e responsável por todos os males do mundo os jesuítas? E como justificar a escolha, para herói e ídolo da democracia portuguesa, do Marquês de Pombal, com o seu perfil desfigurado ao ponto de se fazer dele o homem que aboliu a inquisição? Não admira que os autores de manuais escolares prefiram começar a história do republicanismo português com o episódio do ultimato inglês em 1890 e a indignação levantada por este. Daqui passam directamente ao regicídio e logo a seguir falam da proclamação da república. Assim seguem um caminho mais compreensível, embora ponham de parte os temas predilectos da imprensa republicana.

HM - Que acolhimento têm tido da parte de historiadores, investigadores e outros académicos?

R: Temos recebido apoio de vários investigadores, alguns com sugestões de temas a explorar. Já convidámos os mais empenhados a apresentarem textos bem documentados e temos muitas promessas de colaboração, mas os resultados vão demorar porque os historiadores são perfeccionistas e não querem fazer afirmações que possam ser contestadas. Entre os colaboradores voluntários temos de conciliar os ímpetos dos que querem fazer uma propaganda agressiva contra a república, e os daqueles que, pelo contrário, querem alongar-se em eruditas dissertações especializadas sobre cada tema.

 Do lado contrário já recebemos algumas críticas. Os dirigentes do grupo “República e Laicidade” acham que a questão está mal apresentada, que a memória da república foi denegrida pelo Estado Novo, e acrescentam que se houve distorção da história, a república foi mais vítima do que beneficiada. Nós já escrevemos um texto mostrando que os primeiros responsáveis pelo denegrir da imagem da república foram os republicanos, e não os de segundo plano mas os mais autorizados dirigentes do regime. Reconhecemos que o Estado Novo, para se justificar, invocou muitas vezes a desordem e a improdutividade da Primeira República, mas também verificamos com facilidade que deixou cair no esquecimento a maior parte das arbitrariedades desse período, e a própria inconsistência do pensamento republicano ficou coberta pela poeira do tempo.

HM - Qual o teor das propostas que pretendem fazer chegar ao Ministério da Educação?

R: Temos um grupo que está a estudar essas propostas, examinando os programas e as dificuldades que os manuais encontram na exposição dos temas. Vamos propor que os programas contemplem uma descrição mais pormenorizada e coerente dos regimes políticos, com alguma uniformidade nos critérios de ensino. Não se pode admitir que ao estudar um regime seja atribuída importância primordial aos limites da liberdade de expressão, à existência de presos políticos, à adulteração dos resultados eleitorais, enquanto no estudo de outro essas características sejam ignoradas, como insignificantes pormenores. Queremos que se tenha cuidado com os conceitos políticos usados nos manuais, de forma a incutir noções mais precisas do que é liberdade, ditadura, democracia, eleição, censura, regime representativo, revolução, totalitarismo, constituição e outros. Vamos também propor que se inclua nos programas uma explicação breve mas rigorosa do que foi o pensamento republicano em Portugal.

HM - Que Iniciativas públicas estão programadas durante os próximos dois anos…

R: Estamos a preparar uma exposição sobre a imprensa perseguida durante a república, uma homenagem aos presos políticos e outra aos jornalistas perseguidos. Para estas cerimónias serão convidadas as principais associações ligadas à defesa da liberdade de imprensa e dos direitos humanos, além de representantes dos partidos políticos.  Programámos, além disso, debates sobre os principais temas que apresentamos no nosso site, e serão também convidados representantes de diversas correntes políticas. Tencionamos ainda comemorar algumas das datas mais significativas da história da república, com palestras sobre os acontecimentos celebrados: o dia do assalto aos jornais monárquicos, o dia das pseudo-eleições, o dia da entrada na guerra, etc. E no ano de 1910 publicaremos uma selecção dos principais textos reunidos no site e no blog do Centenário da República. Entretanto, estamos a preparar também a edição de um folheto em que se expõe a história da república vista por republicanos e, ao lado, a mesma história vista por nós, para se perceber como os mesmos acontecimentos podem ter diferentes interpretações.  

Vamos ainda entregar aos principais museus ligados à memória da república - Museu da República e Resistência, Museu da Presidência da República e outros - alguma documentação sobre a história da república, incluindo exemplares de jornais apreendidos, censurados, suspensos ou proibidos depois de 5 de Outubro de 1910.

HM - Quais as pretensões políticas da plataforma?

R: A nossa grande ambição política é o alargamento das comemorações do centenário. Queremos tirar-lhe o carácter de comemorações estritamente oficiais e laudatórias e aproveitar a oportunidade para fazer uma revisão crítica do republicanismo português, na sua ideologia e na sua prática. Tencionamos pôr na agenda política a discussão sobre o legado que os fundadores da república deixaram aos seus herdeiros, apresentando à apreciação pública temas como estes:

O que é que se vai comemorar no ano 2010?

Qual é o lugar do republicanismo na tradição política portuguesa? Ruptura, continuidade ou navegação ao sabor da corrente?

 Poderá alguma corrente ideológica dos nossos dias reclamar a herança do Partido Republicano Português?

Queremos um alargado debate sobre estas matérias. Estamos a dar os primeiros passos na nossa campanha e as reacções que temos tido mostram uma atmosfera muito favorável a este tipo de debates.

FIM