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A Exposição de “Os Ridículos”


Em 31 de Dezembro  de 1910 a jovem república portuguesa ainda não tinha completado um mês de vida, mas queria garantir já um lugar privilegiado na história. Nesse dia o Diário do Governo “convidava” os autores dos manuais de História de Portugal a actualizarem os seus livros com a inclusão dos acontecimentos do mês de Outubro, dada a importância dos mesmos. Este convite / ordem dava um prazo de três meses para serem feitas as modificações e determinava que a narração dos acontecimentos devia ser feita de forma a “afervorar o amor à república” nos alunos.  

Os Ridículos 1913

Caricatura excluída da exposição por critério cronológico (político)

Ao longo dos anos este decreto caiu no esquecimento, mas o seu espírito foi zelosamente respeitado pelos historiadores republicanos, que se consideraram investidos dessa importante a missão: compor narrativas que tivessem o condão de “afervorar” nos leitores o amor à república. Com maior ou menor subtileza, todos eles se submeteram ao espírito do decreto. Não foi preciso muito tempo para perceberem que a única forma de afervorar nos leitores o amor à república consistia na omissão de grande número de acontecimentos que ensombraram a vida do regime.

É dentro deste espírito que se pode compreender a exposição dedicada pela Câmara Municipal de Lisboa ao jornal “Os Ridículos”. Numa atitude de grande prudência, tratando-se do tema “Desenho Humorístico e Censura”, entendeu a Câmara que devia limitar a exposição ao período de 1933 a 1945. Critério cronológico, mas sobretudo critério político, debruça-se sobre uma época e um período cujas relações com a imprensa têm sido largamente exploradas, glosadas, comentadas e dissertadas. Não falta nas nossas livrarias informação sobre a censura no Estado Novo, e a Câmara de Lisboa,  limitando a exposição a este regime, estava consciente de explorar um terreno seguro, conhecido e muito frequentado. Sabendo que, se alargasse a exposição ao rico e inexplorado período da Primeira República, poderia provocar melindres e más disposições, decidiu deixar na penumbra esse desconhecido filão, ignorando e deixando na ignorância as acidentadas relações do poder com o jornal “Os Ridículos”, no período que antecedeu o Estado Novo. Sacrificando o critério da inovação, preferindo o da prudência, privou-se de exibir muitas das melhores caricaturas de “Os Ridículos”, por não estarem incluídas nos rigorosos limites cronológicos e políticos definidos para esta exposição.

Os Ridículos - 1933

Caricatura incluída na exposição por critério cronológico (político)

Deixando nos depósitos da Hemeroteca Municipal boa parte da colecção de “Os Ridículos”, a Câmara evitou também as beliscaduras que uma exposição mais completa poderia provocar no meio político-académico, e em particular naqueles historiadores que têm produzido “investigação” sobre a história da imprensa e da censura. Desde há quarenta anos têm-se publicado estudos especializados sobre a História da Imprensa em Portugal, e o tom geral destes trabalhos, publicados sob os auspícios das mais respeitáveis instituições, atribui aos estadistas da primeira república as mais generosas e liberais intenções no tocante à liberdade de imprensa. Entre os que falam de “total liberdade” de expressão e os que garantem que apenas no período da 1ª guerra mundial se levantaram restrições aos textos publicados, encontramos também aqueles que culpam os monárquicos por a república não ter sido fiel aos seus princípios de liberdade, pois “não deram tréguas” à república, e o resultado foi que esta “se viu obrigada” a alargar o regime de apreensão de jornais. Todos estes académicos pairam num universo de fantasia, muito diferente daquele que seria revelado se fossem expostas colecções de jornais desta época, por isso a escolha da Câmara Municipal evitou um choque entre a história que se publica ou ensina e a que jaz enterrada, quieta e calada nos depósitos das bibliotecas públicas.

O jornal “Os Ridículos”, se fossem expostos os números publicados durante a primeira república, mostraria um regime de imprensa radicalmente oposto ao que nos é apresentado na literatura académica. Os textos e as caricaturas publicados em “Os Ridículos”, no período de 1910 a 1926, falam-nos de jornais apreendidos, de jornais perseguidos, de ardinas detidos pela polícia, de redacções de jornais assaltadas, de “empastelamentos” e de directores ameaçados pelas autoridades. 

“Os Ridículos”, não sendo um jornal monárquico, criou, no entanto, relações cordeais e solidárias com toda a imprensa que atacava os abusos de poder da classe política republicana. Sujeitos às mesmas perseguições arbitrárias, “O Dia”, o “Correio da Manhã”, “A Nação”, “Os Ridículos”, “O Thalassa”, o “Papagaio Real” e outros denunciavam as apreensões, os assaltos e as ameaças de que cada um era vítima. Eram os jornais que a república radical queria abater, a imprensa Thalassa. Criou-se eles um ambiente de apoio mútuo, pelo que cada um dava largo eco aos protestos ocasionados por cada acto de violência sobre os outros.

 Talvez numa próxima exposição haja fôlego para se lembrar este período ignorado das relações entre a imprensa e o regime. Entretanto aqui fica uma amostra do que foram as caricaturas excluídas da exposição. A plataforma do “Centenário da República” põe-se à disposição da Câmara de Lisboa ou de outra instituição que queira montar uma exposição sobre as tortuosas relações do poder com a imprensa durante a república.

Carlos Bobone