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Figuras da 1ª Vereação Republicana (1908)


Cunha e Costa

Em Dezembro de 2008 comemoram-se os cem anos da primeira vereação republicana em Lisboa. A Câmara Municipal de Lisboa preparou, no centenário de tão importante acontecimento, um luzido programa de comemorações, exposições e homenagens, que se prolongarão por alguns meses. Do programa comemorativo deduz-se que as festas circularão em volta de fotografias oficiais, documentos oficiais, discursos oficiais e propaganda oficial. Falta-lhes o elemento humano, o conhecimento das personalidades que integraram essa primeira vereação, dos seus percursos políticos e intelectuais. E assim se perde a oportunidade de rever um conjunto de figuras cuja obra merece a nossa atenção, mais pelo que fizeram fora da política do que pelos seus serviços à república.

 Não se pode dizer que a vereação de 1908 fosse um conjunto homogéneo ou incolor de militantes submetidos aos ditames do partido. Tendo à cabeça um republicano recentemente convertido, Braamcamp Freire, que renunciara ao lugar de par do reino em 30 de Abril do mesmo ano, a lista que venceu as eleições por os monárquicos terem desistido do escrutínio, escapava ao quadro ideológico em que se recrutavam habitualmente os militantes do Partido Republicano. A variedade dos espíritos presentes era grande, e os interesses desencontrados traduziam-se nas obras que alguns deles tinham já produzido: dos estudos genealógicos de Braamcamp Freire aos sonetos anti-jesuíticos de Luís da Mata, da classificação dos bovídios portugueses por Miranda do Vale às Memórias e Receitas Culinárias do Clube dos Makavenkos, reunidas pelo capitalista Grandela, passando pelas conferências do advogado Cunha e Costa sobre todos os assuntos que lhe vinham à mente e pelos estudos de química, economia e história de arte do capitão Tomás Cabreira, dificilmente se encontrará uma linha de pensamento que dê unidade a essa vereação. Estava instalado na Câmara de Lisboa um conjunto de personalidades com reputação estabelecida, com conhecimentos em diversos ramos do saber, mas ligadas por laços frágeis às forças dominantes no republicanismo português. Por isso a administração da capital gozou certa imunidade face ao clima de intriga e guerra partidária que deu o tom à vida política em Portugal nos finais da monarquia e princípios da república. A independência da Câmara de Lisboa não caiu no goto dos republicanos mais ortodoxos, que ferviam de cólera quando viam os dois “aristocratas republicanos”, Braamcamp Freire e Tomás Cabreira, correctamente encasacados e devotamente alinhados na procissão do “Corpus Christi”, às varas do pálio, em companhia do rei D. Manuel II. Segundo conta o irmão de Tomás Cabreira, “os ares turvaram-se num templo maçónico. Na primeira sessão a que Tomás Cabreira assistiu, o Sr. Faustino da fonseca trovejou de ira, em tremenda objurgatória, trezandando a má digestão de Dantec”. O resultado foi que o vereador se retirou da loja a que aderira desde muito novo, ficando “a coberto”, como se dizia em linguagem maçónica. (António Cabreira, Tomás Cabreira através da Vida e Através da Morte. Coimbra, 1920).

 No novo regime cada um dos vereadores seguiu o seu caminho, quer ocupando altos cargos políticos, como Braamcamp Freire e Luís da Mata, quer ocupando cargos governativos e afastando-se depois desiludido da política, como Tomás Cabreira, quer abandonando a república e tornando-se activo defensor da monarquia, como Cunha e Costa.         

Vejamos um breve perfil biográfico dos vereadores eleitos em 1908:

- Luís Filipe da Mata:

Nasceu em Lisboa a 15 de Agosto de 1853 e morreu a 25 de Outubro de 1924. Filiado na maçonaria desde 1880, foi em diversas épocas secretário geral e presidente do Conselho da Ordem. Director da Coligação Liberal e da Associação Comercial de Lisboa, vice-presidente da comissão executiva do monumento ao Marquês de Pombal, vereador da primeira Câmara Municipal de Lisboa republicana, eleita em 1908. Promoveu o Congresso Municipalista e foi Provedor da Assistência de Lisboa.
Entre os vereadores eleitos em 1908 era o representante do mais puro republicanismo. Fervoroso admirador do Marquês de Pombal, acérrimo inimigo da Companhia de Jesus, tornou-se uma das mais influentes figuras da maçonaria portuguesa, onde ascendeu ao lugar de Grão-Mestre. Impulsionador do ensino laico, promoveu a criação de várias escolas primárias libertas da alçada eclesiástica. Deu provas da sua verve poética em 1899, num pequeno livro de versos anti-jesuíticos, intitulado “A Canalha”, cuja venda contribuiu para financiar o monumento ao Marquês de Pombal. Foi deputado em 1913 e senador em 1915. O nome de Luís Filipe da Mata foi dado a uma das ruas de Lisboa.

Os seus poemas dificilmente se encontram hoje em dia, mesmo nas bibliotecas públicas. O catálogo colectivo das bibliotecas portuguesas – “Porbase”- não menciona uma única biblioteca onde se encontre “A Canalha”, o que priva os leitores de uma leitura instrutiva e repousante. O valor desta obra não reside nas qualidades literárias que revela, mas na lição que nos dá sobre os “dotes” recomendados para a ascensão de um militante republicano nas fileiras do P. R. P. e do Grande Oriente Lusitano.

ProtecçõesA Canalha, de Luiz da Mata

Condemna-se o ladrão que vae ao cemiterio
Roubar o que repousa, enfim, da longa vida,
À sombra do cypreste, às horas do mysterio,
Occulto com a cruz da funebre jazida.

Porem co´o jesuita, o rei do beaterio,
Que mata p´ra roubar, na furia insoffrida
D´amontoar dinheiro, o caso é bem mais sério:
Tem varios protectores de força conhecida…

Que importa se matou, com modos embusteiros
Dizendo ser p´ra bem do culto de Jesus?
Que importa se roubou, a profanar a Cruz?

Protegem-no rainhas, nobres, conselheiros:
Vive do seu mister, por onde passa infesta…
E não lhe larga fogo o povo que o detesta!

(Luiz da Matta, “A Canalha”, Lisboa, 1899)

Resumindo

Vós sois, ó jesuitas, nauseantes,
Bandidos, pifios, sórdidos, indinos,
Canalhas, crapulosos, assassinos,
Infames, scelerados, meliantes.

Vós sois torpes, hypocritas, farçantes,
Devassos, servis, perfidos, malinos,
Jacobeus, indecentes, libertinos,
Pulhas, refinadissimos tratantes.

Vós sois a escoria vil, sois miseraveis!
Como a fera, vós sois abominaveis,
Que o sangue vae sugar d´aquelle que morre.

Sois, enfim, tartufos e nojentos,
Perversos, impios, barbaros, cruentos…
E sois ainda mais que não me ocorre!

(Luiz da Matta, “A Canalha”, Lisboa, 1899)

Fiel aos ideais republicanos, maçónicos e anti-jesuíticos até ao fim da vida, tudo leva a crer que Luís Filipe da Mata morreu como viveu, acreditando serem os jesuítas os autores de todo o mal existente no mundo. 

- José Miranda do Vale

Médico veterinário, nasceu em Lisboa a 3 de abril de 1877. Professor do Instituto de Agronomia e Veterinária de Lisboa em 1904. Encarregado pelo estado da compra de garanhões em Espanha, França e Inglaterra. Publicou importantes estudos sobre a criação de bovídeos e sobre as raças de bovídeos portuguesas. Filiado no PRP desde 1902, foi colaborador de “A Lucta”, de Brito Camacho. Autor de uma biografia política de Braamcamp Freire, que deixou incompleta. Em 1911 foi deputado às constituintes pelo círculo de Aljustrel. Afastado da política, voltou a debruçar-se sobre a criação de gado, publicando estudos que ainda hoje são de grande utilidade.

- José Soares da Cunha e Costa

Advogado, escritor e jornalista, nasceu em Lisboa em 1868 e morreu a 30 de Junho de 1928. Colaborador de “O Século” e de “O Mundo”, sócio da academia das Ciências de Lisboa. Orador e conferencista prolífico, dissertou em público sobre sobre temas muito variados. Foi advogado nos mais célebres processos do seu tempo, como o crime de Serrazes e o processo do Banco Angola e Metrópole. Colaborador da obra legislativa de Afonso Costa, nos primeiros meses da república. Apresentou à Assembleia Constituinte de 1911 um projecto de constituição.

Afastado da república, “convertido à monarchia por uma questão de puro patriotismo, pela razão e não pelo sentimento”, foi desde 1914 assíduo colaborador dos jornais monárquicos “A Nação” e “O Dia”.
Em Dezembro de 1913, entrevistado por Joaquim Leitão, esclareceu os motivos que o levaram a afastar-se da república:

“- Quando se declarou em opposição à orientação seguida pela republica?

- Quando vi os responsaveis pela sua consolidação e progressos trahir, successivamente, toda a obra da propaganda; quando, pasmo de tristeza e indignação, assisti à absurda e turbulenta campanha contra os adhesivos; quando vi a republica divorciar-se do paiz, e converter-se no fomento dos interesses de uma casta fechada, de uma oligarchia, de um bando de dentes vorazes e muito alimento; quando vi a republica reincidir, aggravando-os, em todos os erros que haviam perdido a monarchia; quando o novo regimen entrou estouvada e sectariamente n´uma politica religiosa que a consciencia publica e a razão excluía; quando uma taboa raza dos elementares dictames do patriotismo e uma ignorancia que aterra pretenderam escamotear d´emblée oito seculos de historia, e assignalar, por nascimento à nação, o dia 5 de outubro de 1910; quando, por medo, medo physico, medo de uma insignificantissima minoria desvairada o antigo pavilhão portuguez, muito formoso e muito amado, foi substituido por uma bandeira que só os incommodos e vexames de um processo e os receios da cadeia podem impôr; quando ao provimento de todos os cargos da republica vi presidir o arranjismo, cada qual tratando de anichar, com impudor nunca egualado pela monarchia, os parentes, amigos e adherentes. Desde que tudo isso e o resto vi, que queria que fizesse um homem que servia a republica por dignidade e progresso da nação? Salvar-se! Foi o que fiz”.

(…) Indubitavelmente, a Republica hoje, em Portugal, vive exclusivamente pelo terror que as suas leis de excepção, as suas penitenciarias, os seus carceres, as suas devassas e os seus carbonarios inspiram a uma opinião cujas energias uma paz octaviana adormentara. Ora o homem do terror é, evidentemente, o sr. dr. Affonso Costa. D´elle não ha que esperar nem quartel nem piedade”.

Em 1917 / 1918 Cunha e Costa foi colaborador de Sidónio Pais, contribuindo para o restabelecimento de relações regulares entre o estado e a igreja. Sobre esse período escreveu um livro, “A Igreja Católica e Sidónio Pais”, onde ataca duramente a política religiosa da república portuguesa.

Carlos Bobone