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Keil, Fialho e Bruno


Em 2007 assinalaram-se três significativas efemérides relacionadas com outros tantos nomes importantes da história da cultura portuguesa mais ou menos recente: os 100 anos da morte de Alfredo Christiano Keil, a 4 de Outubro; e os 150 anos dos nascimentos de José Valentim Fialho de Almeida e de José Pereira Sampaio Bruno, respectivamente a 7 de Maio e a 30 de Novembro.

Fialho de Almeida
         Fialho de Almeida

O escritor Fialho de Almeida (falecido em 1911), autor de, entre outras obras, dos livros «A Cidade do Vício», «Os Gatos» e «O País das Uvas», foi evocado em Vila de Frades, sua terra natal, e em Lisboa, sua terra de adopção: na primeira a Junta de Freguesia promoveu, de 4 a 7 de Maio, uma série de iniciativas que incluiu concertos, conferências, cortejo etnográfico, exposições, teatro, tertúlias; na segunda o Gabinete de Estudos Olisiponenses organizou uma mesa-redonda com as participações de António Cândido Franco, António Valdemar, Guilherme de Oliveira Martins, Isabel Pinto Mateus e Ricardo Revez, a 17 de Maio, e, com inauguração na mesma data, uma mostra bibliográfica (que se prolongaria por várias semanas).

Alfredo Keil 
Alfredo Keil

Quanto ao compositor e pintor Keil (nascido em 1850), autor de, entre outras obras, da ópera «Susana» e da cantata «Pátria», foi objecto: de uma exposição intitulada precisamente «Alfredo Keil em Sintra – 100 Anos Depois», patente na Adega Visconde de Salreu, em Colares, entre 5 de Julho e 14 de Outubro; de um espectáculo, a 13 de Outubro, no Teatro Nacional de S. Carlos, com a execução da versão integral da marcha «A Portuguesa» e de excertos das óperas «Serrana», «D. Branca» e «Irene».

Sampaio Bruno

Já sobre o escritor Sampaio Bruno (falecido em 1915), autor de, entre outras obras, «A Ideia de Deus», «O Brasil Mental» e «O Encoberto», a Câmara Municipal do Porto preparou um conjunto de eventos, com destaque para uma exposição na Biblioteca Pública daquela cidade – da qual, aliás, aquele autor foi director.
O que tiveram – e têm – estes três homens em comum? Antes de mais, foram contemporâneos, frutos da mesma época política, social e económica. Foram três criadores muito talentosos. Conheceram, em graus diversos, o sucesso, o reconhecimento público e mesmo popular, a fama – mas não tanto a fortuna. Isto em vida. Depois da morte, foram todos votados a uma relativa obscuridade ou mesmo ao esquecimento: as lembranças de Bruno e de Fialho quase só foram mantidas, até hoje, por académicos e investigadores; e a aura de Keil perdurou, quase exclusivamente, por ser o autor da música da marcha que se tornaria o hino de Portugal após a implantação da República, a 5 de Outubro de 1910.

Seria de esperar que dos três fosse o músico a ter uma maior divulgação e «reprodução» dos seus trabalhos nestes últimos cem anos. Porém, por incrível que pareça, não foi isso que aconteceu. Enquanto os livros dos dois escritores lá iam sendo publicados, em edições irregulares, diminutas e pouco ou nada divulgadas, foi preciso esperar até 1999 (!) para ser editado o primeiro CD com composições do músico: «Canções e Obras para Piano», por Gabriela Canavilhas (piano) e Ana Ferraz (voz), na colecção PortugalSom. Apesar de muito belas, estas (pequenas) peças não são as mais representativas de Keil. Estas, na verdade, ainda não estão disponíveis em disco; nem as já citadas nem outras, como as cantatas «As Orientais» e «O Poema da Primavera», os poemas sinfónicos «Uma Caçada na Corte» e «A Índia», o «Hino do Infante D. Henrique» e a «Marcha de Gualdim Pais».

Outro aspecto que «une» estes três vultos é o de, com maior ou menor intensidade, serem habitualmente «reivindicados» pelos republicanos como património seu. O que não é verdade. Keil, amigo da família real, sempre foi monárquico, e «A Portuguesa», composta como resposta ao «Ultimatum» inglês, representa um sentimento – de indignação pelo presente e de orgulho pelo passado – genuinamente nacional, geral, e não meramente dos republicanos; estes, contra a vontade do autor, apropriaram-se da obra. Fialho, apesar de crítico regular das individualidades e das instituições da monarquia, nunca se afirmou republicano e viria mesmo a condenar violentamente o novo regime, ao qual só sobreviveu seis meses – depois de ser proibido de publicar novos textos e de ser ameaçado de expulsão do país. Já Bruno, militante republicano na teoria e na prática, participante activo no golpe de 31 de Janeiro de 1891 no Porto, seria dos três, ironicamente, o que mais sofreria às mãos dos seus (supostos) correligionários por causa de diferenças de opinião: alvo de agressão por parte de Afonso Costa ainda antes do 5 de Outubro, em Fevereiro de 1911 é obrigado a suspender a edição do seu jornal, o Diário da Tarde, e a exilar-se em Paris, depois de ser ameaçado pelo novo governador civil da capital do Norte; tendo começado como protagonista da República, ele viria a acabar, na verdade, como mais uma das muitas vítimas daquela.
As «brumas da memória» que paira(va)m sobre Keil, Fialho e Bruno podem agora ser dissipadas. Se não pelos poderes, actuais e ancestrais, que no último século mais contribuíram para os encobrir, então pelo menos por cada cidadão que os queira (re)descobrir, bastando para isso ligar-se à Rede, aceder a um motor de busca… e digitar os seus nomes. 

Octávio dos Santos
Versão original: O Diabo Nº 1606, 2007/10/9