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O nosso símbolo: o polícia a correr atrás do ardina


Logo centenário da república

 Caricatura publicada no “Papagaio Real”, revista humorística monárquica, em 1914

O ardina foi uma inesperada vítima da república. Nisso distingue-se de outras classes de vítimas, cujo sacrifício fora antecipadamente anunciado. Alguma violência era já de esperar e estava programada muito antes da implantação do regime. Se alguns visionários do calibre de Eça de Queirós previram com décadas de antecedência o carácter turbulento e sanguinário da república portuguesa, qualquer observador da propaganda republicana, por pouco arguto que fosse, poderia prever que a extinção da monarquia traria consigo a perseguição aos institutos religiosos, a demissão do corpo diplomático, de oficiais do exército e dos servidores da Casa Real, a humilhação e expulsão dos jesuítas, etc. Mas nem os mais argutos prognósticos previram que a república, depois de proclamada, viria a criar tão conflituosas relações como as que criou com todos os agentes da imprensa, desde os orgulhosos directores de jornais até aos mais desprotegidos vendedores de rua.

Os ardinas não foram apenas vítimas da violência física, quando os polícias os perseguiam pelas ruas das cidades por incumbência dos governos civis, nomeados pelo governo da nação. As relações tempestuosas do regime republicano com a imprensa afectaram também o ganha-pão desta classe, constituída por rapazes pobres que nada se importavam com a política e apenas queriam vender os jornais que lhes pusessem nas mãos. Desde 1910 as apreensões, os assaltos e as suspensões obrigaram a fechar muitos jornais, o que deixou sem trabalho centenas de ardinas.

A imagem de um polícia a perseguir o ardina pelas ruas de Lisboa não é decerto aquela que a propaganda republicana desejaria afixar nos livros de história. E a verdade é que até agora conseguiu-se deixar na penumbra do esquecimento esta cena, tão frequente no dia a dia do regime instaurado em 5 de Outubro. Os historiadores dedicados à história contemporânea, que nas últimas décadas brindaram o público com dezenas de livros sobre esta época tão agitada, deixaram-se embrenhar nas intrigas políticas, nos golpes e contra-golpes militares, na intriga parlamentar, nos duelos oratórios e nos comentários mordazes dos grandes protagonistas políticos, não lhes sobrando o tempo para questões aparentemente menores, como a liberdade da imprensa e a desgraçada vida de quem a vendia.

Por estes motivos, a imagem do polícia a correr atràs do ardina contém em si uma eloquência que vale por muitas horas de leitura sobre a sociedade portuguesa nos alvores do regime republicano. E assim se coaduna com os nossos objectivo, servindo-lhe de introdução: afasta-nos da república engalanada e artificial dos discursos, das fotografias oficiais e das homenagens fúnebres, introduzindo-nos sem rodeios no mundo real, na república que verdadeiramente existiu. Mostra-nos um acontecimento corriqueiro, conhecido de todos os que viveram há cem anos, mas esquecido pelos historiadores e ignorado por quem confiantemente os lê. Desperta a curiosidade dos que conhecem os princípios  proclamados pela propaganda republicana, revelando um flagrante contraste entre a literatura e a prática. E levanta, mesmo nas mentes mais ingénuas, a suspeita de que existe um lado da história coberto, ainda, por espesso manto de desconhecimento.     

Carlos Bobone