Para que se mediam os crânios dos padres?
Entre as imagens de violência que ilustram a instauração do regime republicano em Portugal, sobressaem as que mostram as humilhações infligidas aos padres da Companhia de Jesus. Assaltados nas suas casas religiosas por fortes contingentes armados, presos, agredidos, insultados, expulsos do país, passaram ainda pela enxovalhante operação de medição dos seus crânios no posto antropométrico da Penitenciária de Lisboa, onde se faziam os estudos sobre a constituição física dos criminosos, para confirmação das teses em voga sobre as relações entre a criminalidade e as anomalias anatómicas. Todos os países “modernos” tinham laboratórios antropológicos nas suas prisões, e embora Portugal não tivesse investido muito nesse domínio, o partido republicano, apóstolo dos métodos “avançados” e “científicos”, advogava a mais completa submissão da justiça portuguesa às teses de Lombroso e seus discípulos, que tinham conquistado a admiração de toda a Europa.
Na primeira semana de vigência do regime republicano, o ministro da justiça Afonso Costa, entrevistado por Joaquim Leitão, prometia um novo código penal, que daria “ampla satisfação a todas as theorias da moderna escola criminalista” (Joaquim Leitão, A Comedia Politica. Lisboa, Bertrand, 1910).
A escola da Antropologia Criminal, fundada por Cesare Lombroso (1835 / 1909), afirmava que o criminoso é um ser diferente dos outros homens, não apenas nos aspectos psicológico e moral, mas também no anatómico. Examinando minuciosamente a configuração física de centenas de detidos nas prisões italianas, observou Lombroso que as lesões, disformidades e assimetrias nos corpos destes eram muito mais frequentes que no conjunto da população do país. Daqui deduziu rapidamente uma relação de causa e efeito, presumindo que a deficiência moral conducente ao acto criminoso seria o resultado de uma lesão ou deficiência física, que afectaria a vida psicológica do criminoso. As lesões ou anomalias anatómicas teriam consequências na vida psíquica destes “degenerados”, provocando a impulsividade, a irritabilidade, a aversão ao trabalho contínuo e disciplinado, e privando-os, ao mesmo tempo, do sentido moral que afasta as pessoas saudáveis do crime. O criminoso aparecia assim transformado em doente, vítima de lesões inatas ou adquiridas, e a sociedade vislumbrava uma esperança de tratar o criminoso, prevendo e evitando o crime. Os estudos de Lombroso e seus discípulos tiveram profunda repercussão no pensamento social dos finais do século XIX. Apresentados com um grande aparato de estatísticas e medições precisas respeitantes à proporção que cada anomalia física podia desempenhar no mundo do crime, eram ao mesmo tempo acompanhados de sugestivas descrições da vida dos criminosos, da sua linguagem, das suas manifestações artísticas, das suas convicções religiosas, do seu apego a certas manifestações da vida primitiva, como as tatuagens. Os pontífices da vida intelectual renderam-se à força dos números e ao profundo conhecimento que os antropologistas criminais pareciam ter do mundo do crime. O público mais vasto deixou-se conquistar pela sedutora hipótese de poder identificar o delinquente por meia dúzia de traços fisionómicos característicos. Em 1898 o popularíssimo “Almanach Hachette”, respondendo a inúmeros pedidos, explicava aos seus leitores como poderiam identificar à primeira vista o carácter dos seus criados. O texto, ilustrado com uma dezena de retratos, correspondentes aos principais tipos fisionómicos, esclarecia os principais defeitos que se podiam esperar de cada um deles: os que indicavam a propensão para a bebida, os que eram indício de tendência para o roubo, os que denunciavam o perigo de maltratar as crianças, etc..
Os discípulos de Lombroso – Garofalo, Nordau, Ottolenghi e outros - acrescentaram às teorias do mestre novas observações, que pareciam especificar a ligação de cada anomalia física a certo tipo de crime, ao mesmo tempo que seleccionavam partes do corpo humano particularmente reveladoras das inclinações para a deliquência. As assimetrias faciais e cranianas pareciam ser companheiras constantes dos criminosos. Nos narizes destes, “a obliquidade aparece a cada passo”. Segundo as estatísticas italianas, os mais assimétricos de todos os criminosos eram os violadores. A tez morena tinha “um lugar de destaque no mundo criminal”, e os olhos pequenos predominavam em todas as categorias de criminosos. As características bucais e dentárias dos criminosos tinham merecido os “desvelados carinhos dos criminologistas”, mas as conclusões a que chegavam eram contraditórias. A orelha tinha a reputação de ser um autêntico índice de “perturbações psiquicas, intelectuais ou de degenerescencia hereditaria”. A orelha em asa mostrava-se frequente nos criminosos, e as suas dimensões ou outras características podiam denunciar vários defeitos psíquicos. O “otómetro”, aparelho para medição de orelhas inventado por Frigerio, um dos discípulos de Lombroso, tornou-se instrumento indispensável em todo o trabalho de investigação criminal.
Em suma, a escola da antropologia criminal conseguira impôr ao mundo moderno os seus métodos de investigação, e apesar dos resultados contraditórios a que se chegava à medida que proliferavam os laboratórios de antropometria, fizera vingar também a sua tese principal, afirmando a especificidade anatómica do criminoso.
Desta corrente intelectual tinha-se feito porta-voz em Portugal o Partido Republicano Português. Arauto do pensamento “positivo” e das mais modernas escolas de investigação científica, encontravam-se nas suas fileiras alguns dos primeiros adeptos e divulgadores da escola de Lombroso no nosso país. A regeneração dos criminosos segundo os preceitos da antropologia criminal era um dos trunfos com que contavam os republicanos para ressuscitarem a “pátria moribunda”, tão furiosamente lamentada pelos seus poetas. Instalados no poder, não demoraram a confirmar a fidelidade à escola de Lombroso, mais por palavra que por actos, devido ao calor das disputas que abalaram o campo republicano e concentraram as energias desses reformadores sociais. Mas em 1914 deu-se o primeiro passo para a conversão do aparelho penal português aos critérios “científicos” acatados por Afonso Costa: criou-se o Posto Antropológico da Penitenciária de Lisboa, sob a direcção do médico antropologista R. Xavier da Silva, dotado de material para as mais meticulosas medições de todas as partes do corpo dos criminosos.
Dada, pois, a importância conferida aos trabalhos antropométricos, pode-se interpretar a humilhação infligida aos jesuítas como uma afirmação brutal do triunfo das escolas de pensamento “científicas”, tal como as entendiam os republicanos. E o simbolismo do acto ganhava significado por ser imposto áqueles que eram tidos por pilares das velhas formas de pensar, sustentos do pensamento teológico, da reacção e da monarquia. Ao mesmo tempo, sujeitando os jesuítas a um exame que era reservado aos criminosos, satisfaziam-se as camadas populares do partido republicano, que durante anos tinham sido ideologicamente alimentadas por uma literatura em que o jesuíta fazia sempre o papel de criminoso.
Carlos Bobone