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Falsificações da História - 1


O Marquês de Pombal Democrata e Inimigo da Inquisição 

Marquês de Pombal

Desde finais da década de 1860 a literatura republicana acumulou esforços na construção de um mito heróico em torno da figura do Marquês de Pombal. Tendo em conta que fora ele o maior inimigo dos jesuítas, atribuiu-se-lhe a maior largueza de vistas, as mais progressivas e liberais intenções. Todos os actos do despótico ministro foram interpretados à luz de objectivos democráticos que se supunham ser a sua primeira motivação, e mesmo a violência com que governou lhe foi levada a crédito, sendo justificada pelo obstinado obscurantismo das forças “retrógradas” e “imobilistas” que se lhe opunham.

O centenário do estadista, em 1882, ruidosamente festejado pela família “democrática”, assinalou a entronização oficial do Marquês de Pombal como herói inspirador do Partido Republicano Português. Em dezenas de festejos, conferências e homenagens, explicava-se ao público que a governação do Marquês não devia ser avaliada pelo carácter brutal e cruel das medidas tomadas, mas sim pelo alcance libertador que tiveram as mesmas:

 “Que importa que morressem os Tavoras, os Athouguias e outros influentes da nobreza que poderiam arrastar unicamente o paiz para um cataclysmo inevitavel?”

“É tyranno o homem que destroe as algemas da escravidão, é tyranno o homem que eleva o povo ao verdadeiro nivel, que o liberta da oppressão dos nobres?” (A. Pinto da Rocha)   

“A barbaridade, essa era do tempo e nada tem que admirar no supplicio dos Tavoras. O que temos a notar, porem, é que o rigor do ferreo ministro cahia egualmente implacavel sobre nobres e plebeus, sobre os poderosos e sobre os parias!”

O Marquês de Pombal era proclamado fundador da democracia portuguesa, e as circunstâncias do meio em que vivera e governara eram tidas por obstáculos que lhe aumentavam o mérito:

“Sebastião José de Carvalho e Mello, oriundo de nobres, e aulico d´um rei absoluto, foi o nosso primeiro democrata” (César da Silva).

“Do seu tempo datam todas as transformações do nosso regimen politico, tendentes a fazer dos direitos do homem o principio de toda a legislação, a base de toda a organização politico-administrativa” (César da Silva).

“O despotismo, a tyrannia de que se argue Pombal, era imposta pelas necessidades, como o unico meio de chegar à liberdade” (M. Emygdio Garcia).

Para traçar o perfil do herói emancipador, num país em que a inquisição se consagrou  como o exemplo supremo da tirania, da opressão, da intolerância e do obscurantismo, era forçoso sugerir ou mesmo afirmar que o grande estadista combatera o Tribunal do Santo Ofício. As imaginativas penas republicanas não desdenharam este pormenor. Os apologistas do Marquês dedicaram-se laboriosamente à construção desse traço biográfico que não podia estar ausente no perfil do grande homem. A princípio foram cautelosos, usando  expressões ambíguas, como “restringiu o poder da inquisição” (M. Emygdio Garcia, 1869), mas à medida que se afervorava o culto do déspota iam desaparecendo os ténues indícios de respeito pela verdade, definindo-se Pombal como “o homem que apaga para sempre as fogueiras da inquisição” (A. Pinto da Rocha, 1882), “o homem que apagou as fogueiras do Santo Ofício” (César da Silva, 1904), o reformador que “apagava ímpias fogueiras do sinistro inquisidor” (Maria Teresa Tavares Barata, 1933), ou o homem que “extinguiu a inquisição”.

A distorção da figura do marquês foi denunciada e rebatida em notáveis escritos, de que são mais dignos de atenção o “Perfil do Marquês de Pombal”, de Camilo Castelo Branco, e o pequeno mas bem documentado estudo de Jordão de Freitas, intitulado “O Marquez de Pombal – a Lenda e a História” (1910). Este último dedica particular atenção à “erronea affirmativa de que o marquez de Pombal aboliu entre nós o Tribunal do Santo Officio ou da Inquisição”, que naquela época era uma “muito repetida e bastante frequente asserção”. Depois de lembrar que a extinção do Santo Ofício data de 31 de Março de 1821, Jordão de Freitas aponta vários actos do Marquês  que demonstram o grande empenho com que reforçou, aumentou as dignidades e pôs ao serviço da sua política o temido tribunal. Filho e neto de Familiares do Santo Ofício, Pombal estreitou os laços da sua família com a inquisição, fazendo-se também familiar e promovendo o seu irmão, Paulo de Carvalho e Mendonça, a inquisidor-geral. “Sebastião José de Carvalho e Mello, bem longe de acabar com aquella instituição, … equiparou-a aos outros tribunais regios, ordenando que fosse tratada por Magestade (alvará de 20 de Maio de 1769) e deu-lhe um novo Regimento”. Denunciou ao Santo Ofício o padre Gabriel Malagrida, que fez garrotar e queimar no Rocio em 1761. Num edital de 12 de dezembro de 1769, Sebastião José mandou recolher e inutilizar todos os livros que se haviam publicado contra este “Tribunal util e necessario”, dizendo que não ha “entre todos os estabelecimentos humanos estabelecimento algum que tanto possa contribuir, e tenha effectivamente contribuido para defender e conservar illibado, em toda a sua pureza, o sagrado deposito da Fé e da Moral que Christo nosso Redemptor confiou à sua Egreja, como tem sido e é o Santo Officio da Inquisição, principalmente depois do seculo XIII”.   

Estes esforços para a restauração da verdadeira imagem do Marquês de Pombal, não conseguiram deter a enxurrada de propaganda com que a imprensa republicana desfigurava o ministro de D. José. Mas impôs alguma contenção nas publicações oficiais. Estas evitavam afirmar expressamente que o Marquês de Pombal extinguira a inquisição, embora sugerissem que assim acontecera. 

Numa publicação do governo português, editada em 1915 pela Imprensa Nacional, por exemplo, diz-se que a inquisição foi “restabelecida” no reinado de D. Maria I, sob a regência do príncipe D. João – de onde se depreende que tenha sido extinta no reinado anterior, sob o governo do Marquês de Pombal, “cuja tradição brilha fulgurantemente na história portuguesa”, como nos elucida o mesmo texto (Da Monarquia à República. Crimes e Esperanças. Lisboa, Imprensa Nacional, 1915).

Carlos Bobone