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A República vista por… Fialho de Almeida


Fialho de AlmeidaNão apenas o período que se seguiu ao 5 de Outubro de 1910 foi fértil em vozes de protesto e crítica sobre a situação que emergira daquele Golpe de Estado. Já muito antes a intelectualidade portuguesa franzia o sobrolho à ideia da República gizada nas vielas obscuras de uma Lisboa contaminada por descontentes. Se o ódio de certos anarquistas, inflamados pelos reais homicídios que, quase por «moda» se abateram sobre a Europa do século XIX, era dirigido aos monarcas - para eles os únicos culpados da ideia de conjuntura instigada pela imprensa e por meia dúzia de académicos -, o resto do país vivia sobre uma ideia de respeitabilidade institucional que nenhum estudo tem posto em causa, não obstante tal poder significar uma paz podre. Os republicanos não queriam a paz e certos intelectuais, como Eça de Queirós e maioria dos Vencidos da Vida, mais afeitos à evolução do que à revolução, viam com alguma desconfiança a ameaça ao sistema governativo. Reconhecendo, contudo, que era necessária uma mudança, já teriam a visão suficiente, como mais tarde o dirá Fialho de Almeida, para reconhecer que «em países cultos e com uma noção definida de liberdade, república e monarquia constitucionais são tabuletas anunciando uma só mercadoria» (ALMEIDA, Fialho d’ – Saibam quantos… (cartas e artigos políticos). Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1912, p. 17) e que a conjuntura exigia medidas estruturais que não se compraziam com o brincar aos reis ou presidentes. O Regícidio, em 1908, lançou o pânico. Tornou-se então evidente que a República estava disposta a tudo para obter o poder como efectivamente viria a fazê-lo, depois de 1910. Poucos mantiveram-se fiéis ao regime deposto, fosse por medo, fosse pela subsequente enxurrada de benesses que os paladinos da república começaram a distribuir para atrair às suas fileiras hordas de cidadãos que voltariam a ser súbditos se a monarquia voltasse no minuto a seguir. Mas nunca deixou de haver críticos, uns abertamente monárquicos, como Carlos Malheiro Dias, outros como Fialho de Almeida, essencialmente cépticos. Não obstante o seu legado pré-1910, porque já falecidos aquando do golpe republicano, seria interessante conhecer a reacção de Camilo, Eça, Antero, entre outros à chegada da República. Seria de entusiasmo, cepticismo ou desilusão? É que o ideal fervilhante dos primeiros dias, não demorou a vacilar face às medidas autoritárias que seguiram e até célebres apoiantes como Guerra Junqueiro perceberam que a república tinha sido o pior para Portugal.

A voz dos contemporâneos ou, melhor, a sua pena, é o canal privilegiado para ouvirmos e vislumbramos o Portugal pré e pós República e como o «novo» regime se reconstruiu para se ajustar e ajustar o país a uma falsa modernidade, sob o pretexto da Democracia (conquistada, afinal, em 1834) que, entre avanços e recuos, terminaria definitivamente em 1926 para apenas ser restabelecida a 25 de Abril de 1974. Nesses 16 tumultuosos anos, a República e os seus paladinos conseguiu silenciar os seus críticos e criar uma imagem identitária forte que resistiu até aos dias de hoje (em grande parte graças à propaganda ideológica e à mudança brusca dos símbolos nacionais). Talvez por isso exista ainda hoje um desconhecimento tão grande em relação a autores não colaboracionistas, como Malheiro Dias, Homem Cristo, Fialho de Almeida. Só Fernando Pessoa, na voracidade, às vezes paradoxal, do seu pensamento, mas manifestamente crítico ao regime, resistiu à «lavagem» ideológica. Observado e analisado o programa literário destinado à educação nacional ao longo do século XX, ficaremos com a impressão de que todo o desenvolvimento e pensamento científico do século XIX foram alicerçados sobre a obra de eminentes republicanos. Será malícia de uma parcialidade ideológica ou dado que nada terá de casual? Os regimes, os partidos, os grupos escolhem os seus ídolos e, uma vez no poder, tratam de glorificá-los e usá-los como modelos para «educação» das massas que pretendem electrizar e governar. Seria inocente e irresponsável pensar o contrário.

A série que agora iniciamos, sob o título «A república vista pelos seus contemporâneos» visa contribuir para responder ao monólogo escrito pelo regime de 5 de Outubro e assim, de uma vez por todas, podermos finalmente compreender a História como um todo e não como parte de partes. Abrimos esta rubrica, destinada à transcrição e comentário de excertos literários e cronísticos sobre a República Portuguesa, com Fialho de Almeida.
É deste escritor insuspeito, porque dono de um paradoxo pouco comum ao português dos primeiros anos do século XX que saíram das crónicas mais luminosas e vibrantes sobre os primeiros instantes da República. Não são escritos a quente, nem saídas da pena ressabiada de um detractor compulsivo (embora, reconheçamo-lo, Fialho de Almeida foi, acima de tudo, um crítico). Antes o registo de um juiz para quem ambos os regimes – Monarquia ou República – tinham a marca da indiferença, gizada por um povo desinteressado, analfabeto e facilmente manipulável pela demagogia. Assim se fizera a República de 1910, morta pelo cansaço de um rotativismo mas sobretudo pelas dissensões internas, onde os políticos, esquecidos da honra e da lealdade pleiteavam sobre o individualismo e o egoísmo das benesses e do poder.

“Saibam quantos…” é um dos melhores retratos da revolução republicana, dos seus métodos mesquinhos e dos atalhos dos seus homens (uma pequena minoria de cabecilhas) para tomar à força um país anémico, convertendo súbditos em cidadãos como se tal fosse a solução para o arranque económico e para o desenvolvimento cultural do país – embora tais objectivos, como anota e bem Fialho, estivessem longe de constituir o programa ideológico do republicanismo. Tomado o poder, havia que reparti-lo, dá-lo a quem merecia, convertendo oportunistas em republicanos e os novos republicanos em caudilhos. Formar uma classe política para dominar o Estado e a Sociedade, assegurando que os súbditos não reclamassem o regime deposto foi, até á chegada de Salazar, o principal móbil da política republicana. Só muito atrás vinha as causas da educação, do trabalho, da saúde, etc. O frenesi legislativo mostra um temor e um nervosismo que vai minando a república, ao ponto de criar a instabilidade que se conhece para o período e longe da ideia de grandes reformas está, nada mais, nada menos, do que a destruição das instituições criadas pelo Liberalismo para erguer sobre elas um aparelho ideológico – espartilho e condicionador de liberdades que os republicanos apregoavam não existirem antes de 5 de Outubro de 1910. Fialho d’Almeida descreve este processo de coacção, resistência, eliminação, em suma destruição que os republicanos (novos e velhos) vão levando a cabo nos primeiros “minutos” da longa noite republicana. Se estas citações são o espelho de um “verão quente” ou, no caso, um “inverno rigoroso”? Não. Basta pensar nos 99 anos que se lhe seguiram para perceber que pouco mudou. 

Nuno Resende