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Jornalistas presos pela Polícia de Segurança do Estado


Desde 1919 a vigilância e repressão da imprensa passaram para a esfera de competências da Polícia de Segurança do Estado. Agindo sempre num muito vago enquadramento legal, pois a República mantinha-se firme na proclamação da plena liberdade de expressão –  exceptuando o breve interlúdio de censura que acompanhou a intervenção portuguesa na guerra - , as autoridades republicanas evoluíam para uma forma de perseguição mais profissional e sofisticada. Depois dos assaltos à imprensa monárquica, católica, evolucionista, unionista ou democrática, depois das apreensões de jornais, com os seus episódios grotescos de perseguição aos ardinas pelas ruas das grandes cidades, chegava-se a um ponto de maturidade, adoptando-se métodos de trabalho mais sérios e eficientes. Não significa isto que fossem abandonados os antigos processos. Os assaltos a jornais continuaram até 1927, e as apreensões também não caíram no esquecimento. Mas havia agora um tratamento especial reservado aos delitos de opinião.

Em finais de 1920 os cárceres da Polícia da Segurança do Estado albergavam dois jornalistas de convicções muito diversas, o socialista Manuel Ribeiro e o monárquico Fèlix Correia. Ambos viriam a ter carreiras bem sucedidas nas letras, seguindo diferentes inspirações. O primeiro converteu-se ao catolicismo e escreveu romances de inspiração evangélica, muito bem recebidos da crítica e do público, tendo um deles chegado a ser transposto para o cinema. O segundo deixou-se atrair pelos triunfos da nação alemã, tornando-se um dos maiores propagandistas do Terceiro Reich no nosso país. Dirigiu o jornal “Esfera”, órgão da propaganda alemã, e foi autor de dois livros muito lidos, “Quem vem lá? Gente de paz, gente de guerra”, e “Quem matou o Rei D. Carlos”.  
Em 7 de Novembro de 1920 o diário republicano “A Manhã” publicava um comentário do jornalista Norberto Lopes sobre a prisão dos jornalistas Félix Correia e Manuel Ribeiro:

“DOIS PRESOS
A policia de segurança do Estado – instituto cuja utilidade eu desconheço e cujo peso moral para o regime é manifesto – prendeu, entre dezenas de criaturas que já pôs em liberdade por nada se provar contra elas, dois jornalistas que estão ainda presos: Manuel Ribeiro e Felix Correia. O primeiro é bolchevista, o segundo é integralista. O primeiro é escritor, pensador, trabalhador e criatura honesta; o segundo é propagandista, estudioso, critico e tambem honesta criatura. São ambos fanaticos pelas suas doutrinas, o que é perdoavel numa epoca em que todos encaram o fanatismo como condição de morrer de fome. Os prisioneiros escrevem: o primeiro na Bandeira Vermelha, o segundo na Monarquia. Parece que são adversarios do regime, e eu escrevo parece porque penso que os melhores e mais eficazes adversarios do regime estão dentro dele. Marat dizia uma coisa parecida dos jacobinos dos clubs, mas eu não quero seguir as pisadas de Marat, porque julgo que isso me pode dar uma caracteristica revolucionaria que eu não mereço. A policia de segurança do Estado tem estes dois rapazes a ferros, creio por eles terem escrito manifestos, que é uma coisa que deve ter dado muito que fazer à ordem publica. E não ha maneira de os por em liberdade, visto que agora transitaram para a 1ª divisão do exercito. Em resumo: eu não vou repetir que seja uma violencia (porque A Manhã já com poderosas razões o afirmou) o conservar prisioneiros estes dois moços. Digo só que se trata de um excesso de zelo muito para lastimar. É o menos que posso dizer.
 Peço que me perdoem. Estas expressões proveem do meu sentimento de jornalista ofendido. Isto dura ha algumas semanas, e não ha maneira de esclarecer o assunto, em termos de se ver que crime cometeram os dois adversarios do regime republicano. Não ha nem haverá. As coisas levam esta ou aquela volta, e os homens, depois de serem muito massacrados com preguntas, interrogatorias, vexames e ridicularias, acabam por ser dados à liberdade. É fatal. Mas quando? Em regra estas coisas terminam sempre com o desprestigio dos que prendem contra o direito dos que escrevem e que foram presos por escreverem. Não sou capaz de perdoar a ninguem uma cobardia, porque sou incapaz de a praticar. Sei que cobardias tanto as ha da parte dos que teem a função de prender como da parte dos que teem a faculdade de escrever. Ha pessoas que escrevem – covardes. São os que escrevem sem nome, e nunca acusam a autoria. É por isso que eu condeno os manifestos e as cartas anonimas. Porém, no caso sujeito, Felix Correia disse de sua responsabilidade e Manuel Ribeiro tambem. Do que estão pois à espera?que faz a policia de segurança do Estado? E a primeira divisão do exercito? E o governo, quer pela mão do sr. Alves Pedrosa, quer pela mão do sr. Helder Ribeiro? Porque não julgam os criminosos? Ou melhor: porque é que não os põem em liberdade condicional, visto que eles não fogem?
Isto dura ha um rôr de semanas, e nós – infelizmente – já sabemos por centenas de provas de casos identicos que provas de delito contra os dois jornalistas não as ha. Como positivamente os rapazes não estão feitos nem com o sr. Liberato Pinto nem com o sr. major Marreiros – prisão com eles. Não nos ha de esquecer nunca, como republicanos que somos, das famosas prisões dadas como sensacionais do dr. Cunha e Costa e Fernando de Sousa, monarquicos confessos, e que redundaram num fiasco. Historias! Temos a intima convicção de que contra o jornalista Manuel Ribeiro e de que contra o jornalista Felix Correia só ha o odio dos adversarios, esses adversarios que imaginam que a politica e a doutrina social são uma questão fechada e que isto ha de à força ser apoiado por toda a gente. Uma vez, ha cento e tal anos, o corregedor da justiça do Bairro Alto foi censurado pelo intendente de Policia por não prender os elementos liberais da area da sua jurisdição.
- Não os posso prender, senhor! Fazia o corregedor.
- Então porquê? Acaso não dispõe de força?
- não, senhor. É que … já estão todos presos!
O caso não é bem o mesmo. Ainda ha muitos jornalistas em liberdade, felizmente para a Republica. Mas reside na citação qualquer analogia com a situação que se pretende criarcom a prisão dos dois moços escritores adversarios do regime. São atrevidos, são pertinazes, não desarmam, e por consequencia a sua prisão sempre ha de ter uma pontinha por onde se lhes pegue. Ora em sã justiça republicana isto não pode ser assim, não deve ser assim. Os dois jornalistas em materia de correcção e boa educação, de lealdade e até de civismo, são criaturas do jaez de todos nós. Manifestamente, porque combatem e porque se excedem – e é certo que se excedem –não se lhes vai pôr eternamente a laje de pedra em cima da cabeça. Os jornalistas republicanos, antes de 1910, tambem as fizeram e escreveram boas…
 Ainda estamos aqui a pedir que ponham os homens em liberdade, porque já passaram semanas e semanas, tempo mais que suficiente para ajuizar do alto crime dos dois pobres jornalistas. Se esta gente da intendencia e da primeira divisão soubesse o que custa isto de jornalismo! O que isto, para tantos, e com certeza para Manuel Ribeiro e para Félix Correia, representa de sacrificio! Põem este dilema feudal diante dos olhos: ou engraxar as botas do regime na alternativa cobarde de estar silencioso contra o direito constitucional, ou falar claro como se pensa e ir para a cadeia, à ordem de uma divisão qualquer do exército. Não. Pois é claro que não. O chefe do governo é jornalista; vamos a ver isto. Vamos evitar que na Republica não se possa ser ou monarquico ou anarquista. Na Republica – pode-se ser tudo, santo Deus! Era pelo menos isto que nós apregoávamos nos comicios da avenida D. Amelia. Em boa verdade, o jornalista Manuel Ribeiro e o jornalista Felix Correia escreveram em termos muito mais moderados do que o fazia o deputado Antonio José de Almeida, que foi o nosso idolo, e se calhar até o idolo do sr. presidente do ministerio. Ou então – pela logica – então prendam-nos a todos… Norberto de Araujo ”.
 

Carlos Bobone