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A história ensinada nas escolas da república


A história de Portugal escrita pela república vitoriosa, e ensinada aos futuros cidadãos da nação portuguesa, incorpora, naturalmente, os principais temas da propaganda do PRP, embora suavizando os termos, acautelando com expressões vagas as acusações sem consistência, e omitindo grande parte dos insultos à dinastia de Bragança. Comparando a propaganda oficial do PRP anterior a 5 de Outubro com os manuais aprovados para as escolas primárias, como o de Chagas Franco e Anibal Magno, tantas vezes reeditado e louvado pelas autoridades da república, encontramos pontos de comunhão, pontos de divergência e pontos de omissão.

Tal como na propaganda republicana, o Marquês de Pombal desempenha no manual escolar o papel de herói, e o rei D. Carlos o de vilão.

Antes de se chegar a estas figuras, passa-se por um longo cortejo de actos heróicos, próprios para a edificação patriótica do aluno. A história é ensinada em forma de diálogo entre um pai e um filho, num tom altamente moralista. O espírito que preside ao livro é o do mais exaltado patriotismo: “todos os povos reivindicam hoje a sua história; nenhum a tem tão grande como nós”, diz-se logo de entrada. E ao longo do livro vamos aprendendo como a “sagrada independência” de Portugal se mostrou “invencível”. Os primeiros capítulos desfiam uma sucessão de prodígios heróicos, e os actos  dos primeiros reis são caracterizados com as denominações de heroísmo, valentia, bravura, valor e outros sinónimos destas. Poucas excepções se abrem: D. Afonso II é avarento, D. Fernando leviano, fraco e variável no seu carácter. O “heroísmo português” é a personagem central do livro.

A deposição de D. Sancho II é pretexto para uma tirada anticlerical. Pergunta o filho: “Então os Papas podem depor os Reis?” Ao que o pai lhe responde: “Os papas, que teem hoje uma autoridade e um prestigio muito reduzido, tinham na Idade Media um poder imenso. Nesses tempos de fanatismo eles podiam excomungar os reis, podiam lançar os interditos sobre os reinos”.

O papel do povo nos grandes acontecimentos históricos é constantemente exaltado, enquanto o dos nobres se apresenta sempre digno de censura. A corrupção destes e o “fanatismo” são responsáveis por todas as desgraças do país, e até da Península Ibérica, começando no tempo dos reis godos “fanatizados”, que “desprezavam os negócios públicos e iam depois ajoelhar diante dos padres nos concilios pedindo que lhes valessem”. Os nobres, na Idade Média, não lhes bastando terem corrompido o império visigótico, formavam  quadrilhas enormes “que atacavam pelos caminhos os viajantes e devastavam os campos e as aldeias”.  

Em 1383, enquanto a nobreza se imobilizava na indecisão ou tomava o partido de Castela, “o povo levantou-se e salvou mais uma vez a independencia da pátria”. Se alguém perguntar como é que, com tão débil apoio, foi possível vencer o poderoso exército de Castela, a resposta encontra-se num só nome: O Condestável D. Nuno Álvares Pereira. Este “surge, fere e vence”.

Segue-se a gesta dos descobrimentos, nova sucessão de actos heróicos, embaraçados apenas pelas constantes conspirações dos “nobres”. O aluno é incitado a fazer juizos de valor sobre cada um dos reis, embora a coerência não abunde nos adjectivos que se distribuem com prodigalidade. D. Afonso V era “estouvado e imprudente”, tanto que até cobiçou a coroa de Castela. D. João II, pelo contrário, foi um grande rei, prudente, ilustrado, muito justo e muito sério. Para exemplo dos seus grandes projectos, “basta que lhes diga hoje que ele tinha casado seu filho D. Afonso com a filha dos reis de Castela e Aragão, e que trabalhou para o fazer imperador de Portugal, de Espanha e da India”.

A expulsão dos judeus é lamentada, e neste passo retira-se o povo do seu pedestal, revelando-se que ele “era intolerante, odiava-os, maltratava-os muitas vezes”. A mesma compaixão encontra-se ausente quando se fala dos povos da Ásia a quem as armadas portuguesas impuseram a sua lei. Afonso de Albuquerque é caracterizado com os superlativos “muito bom e muito justo”, e a sua valentia é apontada como motivo de orgulho para os portugueses.

D. João III é sumariamente condenado com os qualificativos de “pouco inteligente, pouco instruído e muito fanático”. A introdução do tribunal da inquisição e a dos jesuítas, no seu reinado, são os “crimes” que, segundo a instrução republicana, trouxeram a Portugal todas as desgraças. Veja-se um quadro do que se passou depois: “começámos a ficar para traz, a embrutecer-nos, a estragar-nos. Não se estudava, não se lia já, não se faziam invenções, os estrangeiros fugiam de nós, a industria e o comércio arruinavam-se, o povo fanatizava-se, embrutecia-se, tornava-se a pouco e pouco macambuzio e indolente”. Como se isso não bastasse, os autores ainda agravam  este quadro, reduzindo as classes inferiores à mais extrema miséria: o povo “era desde o tempo de D. João III quasi exclusivamente constituido de escravos e mendigos”.   

Do reinado de D. Sebastião a única coisa que se mostra digna de menção é o feitio exaltado e ambicioso do rei, e o ter sido “fanatizado” por um jesuíta. No reinado seguinte só há espaço para dizer que o cardeal D. Henrique era velho, imbecil e fanático. Passa-se depois à crise dinástica de 1580, com o habitual alinhamento do povo para um lado e a nobreza para outro. As explicações para a derrota do partido nacional, equivalente ao do povo, condensam-se em fórmulas simples: “o povo não era já o heroico, esforçado povo do mestre de Avis e do Condestável. A inquisição fizera-o taciturno; as grandes guerras, as grandes viagens, as grandes misérias dos reinados de D. João III e D. Sebastião tornavam-no resignado e cobarde”. E acrescenta-se uma explicação mais clássica, embora contraditória do espírito deste manual: “A flor da fidalguia e da mocidade tinha ficado em Alcácer Kibir”. 

Se, aqui chegados, os pequenos leitores estiverem persuadidos de que a situação do povo não podia piorar, estão bem enganados, pois agora vão saber o que é o sofrimento. Segundo os nossos autores, os portugueses, sob o domínio filipino, sentiram o que é a escravidão. E o aluno imaginário, incrédulo ante o que ouve, pergunta: “Mas o povo não fazia nada, meu pai?” recebendo esta resposta: “Ora, o povo! O povo chorava, morria de fome e continuava a esperar que D. Sebastião chegasse ao Tejo numa manhã de nevoeiro”. No tempo dos filipes mencionam-se ainda alguns grandes portugueses, que se distinguiram na defesa das possessões portuguesas, mas o quadro geral é de “vexames e opressões”, tantas e tão grandes que levam os historiadores republicanos ao esquecimento das habituais malfeitorias atribuídas aos nobres, reconhecendo-lhes, desta vez, a iniciativa que livrou o país da opressão.

Passando à dinastia de Bragança, depois de breves momentos de exaltação patriótica à volta da guerra da restauração, todo o esforço se concentra na descrição de um panorama de decadência e fanatismo, para preparar a chegada do messias, salvador da pátria e precursor da república.

 O Marquês de Pombal, embora despido dos ideais democráticos que a propaganda republicana lhe atribuía, é caracterizado como o homem que fez sair o país da decadência e o libertou do fanatismo, reorganizando todas as actividades e expulsando os jesuítas, que considerava “justamente culpados do fanatismo do povo e da decadência do país”. O governo de Pombal é descrito com todas as aparências de uma caminhada para a liberdade e a igualdade: “aboliu a escravatura no reino, deu os mesmos direitos a cristãos novos e cristãos velhos, deu liberdade aos índios do Brasil, diminuiu o poder da inquisição …” aqui segue-se com fidelidade um dos temas caros à propaganda republicana, embora não se chegue ao ponto a que esta chegou, afirmando que o Marquês de Pombal abolira a inquisição.

As páginas consagradas ao liberalismo principiam, naturalmente, com a invocação do herói da maçonaria, Gomes Freire de Andrade, e da sua conspiração, em que os manuais garantem a inocência dele, segundo a tese ortodoxa cultivada pela maçonaria, mas desmentida ou pelo menos posta em dúvida por documentos já então publicados.

As lições dedicadas ao reinado de D. Carlos começam com um resumo destinado a provocar a revolta do aluno: “Este rei consentiu grandes esbanjamentos nos dinheiros públicos, apoderou-se indevidamente de grande parte deles, violou muitas vezes a constituição do estado e atacou as liberdades públicas”. Seguem-se breves dados sobre este reinado: o ultimato, o 31 de Janeiro, cujos promotores foram “atrozmente perseguidos”, as campanhas de África, novas alusões a escândalos, esbanjamentos e ministros que falsificavam orçamentos, e finalmente a ditadura franquista, que “praticou muitos actos de violencia indispondo quasi toda a nação com o rei”. O capítulo termina com o regicídio, mas para acomodar o aluno a esta violência, diz-se que em 31 de Janeiro de 1908 o rei assinara um decreto “permitindo que fossem expatriados todos os adversarios do governo”, o que “levou ao seu auge a colera do povo”. Distorcendo grosseiramente o conteúdo do decreto, os autores do manual conformavam-se a um dos grandes temas da propaganda republicana, que pretendeu apontá-lo como o causador do regicídio. Na verdade, o diploma assinado pelo rei D. Carlos permitia a deportação daqueles que fossem condenados por crimes contra a segurança do estado, mas a propaganda republicana, não distinguindo o poder executivo e o judicial, confundia tudo, dizendo que assim se podiam expatriar todos os adversários do governo.

 Carlos Bobone