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A insurreição de 31 de Janeiro de 1891


Determinantes da sua ocorrência

Na passagem do centenário desse breve episódio intitulado «31 de Janeiro», a revista mensal portuense de estudos históricos e literários «O Tripeiro» dedicou-lhe um número exclusivo (Janeiro de 1991). Foram convidados para expor os seus pontos de vista o saudoso Dr. Henrique Barrilaro Ruas e o signatário, através de textos que ambos publicaram. Um deles é o que segue, em resposta ao início das comemorações oficiais 100 anos da República, ocorrido na cidade do Porto, precisamente no passado dia 31 de Janeiro.

Eu creio que o Porto, cidade digníssima, merece uma explicação desapaixonada desse levantamento que a História oficial crismou com a data da sua ocorrência - o «31 de Janeiro». Será bom, por isso, que recordemos alguns acontecimentos que marcaram a política diplomática e colonial portuguesa, no último quartel do século XIX.

É sabido que, até então, pouco atentara a Europa nas colossais perspectivas de riqueza que se lhe deparavam no continente africano. E que, já nessa época, no confronto com as demais potências do mundo ocidental, Portugal ficara a perder por insuficiência de meios, falta de poderio militar e, o que é mais grave, alguma «estreiteza de vistas».

Daí o recurso sistemático ao auxilio inglês, invocando a velhinha aliança, numa aflição de pintaínho friorento que busca o calor da mãe-galinha. Daí, também, o tratado que, com um suspiro de alivio, celebramos em 26 de Fevereiro de 1884 com a Grã-Bretanha, por via do qual eram reconhecidos os nossos direitos nas duas margens do Rio Zaire, até ao limite do Congo.

Veio o referido acordo a suscitar viva polémica entre as nações civilizadas. Concretamente, a França, a Bélgica e a Alemanha sentiram-se lesadas nos seus interesses. Poderá mesmo dizer-se que o tratado luso-britânico esteve na origem da crise internacional que havia de conhecer o seu epílogo com a realização da Conferência de Berlim, entre Novembro de 1884 e Fevereiro do ano seguinte.

Considera Luís Vieira de Castro, na sua obra intitulada «D. Carlos I - Elementos de História Diplomática», que Bismarck demorou a concluir pelas vantagens na exploração da África inóspita. Todavia, o Chanceler temia a hegemonia britânica, a cuja consumação ele pretendia a todo o custo obstar. A actividade dos diplomatas vai conhecer momentos sibilinos. Esgrimindo com os projectos ingleses para o Egipto, a Alemanha conseguirá inviabilizar as pretensões portuguesas garantidas pelo tratado de 1884. De que modo? - fazendo consagrar a doutrina que exigia, nos territórios africanos sob a tutela das potências signatárias, «a existência duma autoridade suficiente para fazer respeitar os direitos adquiridos», conforme o consignado na acta geral da Conferência de Berlim. Isto é: não mais bastará o domínio histórico, fundado, tão-só, na vénia devida à memória de algum remoto descobridor; torna-se necessário, daqui para a frente, que cada Nação ocupe efectivamente as zonas que pretende suas.

Era como que um chamar dos corredores à linha de partida. Venceriam os que tivessem melhores pernas. As nossas eram curtas, disso estávamos conscientes. Como acompanhar os restantes concorrentes no «assalto» ao interior do continente negro? Os portugueses sentem, por vezes, bastante dificuldade em reconhecer as suas limitações. Donde a frequente necessidade de transferir as culpas dos seus fracassos -. neste caso para a Inglaterra, imediatamente acusada pela opinião pública de nos ter traído.

Incompreensivelmente, o Governo entra a fazer coro com o descontentamento popular - e, esquecendo a secular aliança, enceta uma política de aproximação à Alemanha. Comentava, a propósito, o jornalista republicano Homem Cristo (1): «contra qualquer das outras grandes nações ainda poderíamos, por mais infundada que fosse, alimentar a esperança de encontrar apoio na Grã-Bretanha. Mas contra esta?”

Face às imposições da Conferência de Berlim, as autoridades portuguesas começaram a arquitectar, entretanto, um projecto de ligação das duas costas africanas, com o consequente assenhoreamento do imenso território intermédio. Enfim, “uma impossibilidade geográfica», no juizo de Aires d’Ornelas; e, indiscutivelmente, um grave erro político, atendendo aos claros intuitos expansionistas da Inglaterra. O nosso Governo brincava com o fogo …

Sobraçava, então, a pasta dos Negócios Estrangeiros o ministro Barros Gomes. Em 20 de Dezembro de 1886 é assinado um convénio com a Alemanha, nos termos do qual se definia rigorosamente a fronteira sul de Angola e o limite norte de Moçambique, assistindo aos nossos coloniais “o direito de exercerem a sua influência soberana e civilizadora nos territórios que separam as possessões portuguesas de Angola e Moçambique». Como contrapartida, cedíamos aos alemães uma área vastissima entre o Cabo Frio e o Rio Cunene.

Ao apresentar este documento na Câmara dos Pares, em 1887, Barros Gomes fazia-o acompanhar de uma carta da proclamada África Meridional Portuguesa - o Mapa Cor-de-Rosa. O Império idealizado por Cecil Rhodes, subindo da Cidade do Cabo até ao Cairo, que a Grã-Bretanha vinha já concretizando, foi algo que o Governo lusitano não levou em consideração. Ninguém se lembrou de consultar a nossa aliada, no sentido de conciliar os interesses em causa. E o certo é que a “miragem” de Barros Gomes, a tornar-se realidade, isolaria as colónias inglesas do sul. Eis o que muito servia as cautelas dos alemães, com cuja solidariedade ingenuamente contávamos.

A reacção do Governo de S. M. Britânica não se fez esperar. Logo em 2 de Agosto de 1887, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Lord Salisbury, enviava ao seu homólogo português uma nota-protesto, alegando que no Mapa Cor-de-Rosa se incluíam territórios já na posse da Inglaterra, e recordando a doutrina fixada na acta geral da Conferência de Berlim.

Alguns dos revoltosos presos ao largo de Leixões: Durão, Abade de S. Nicolau, Felizardo Lima, Homem Christo, Aurélio Paz dos Reis, João Chagas e Simões de Almeida (da Esquerda para a direita)

Avisos desta natureza, a recomendar-nos tento nas ambições, recebêmo-Ios amiúdemente. «Diga-se em honra de Lord Salisbury - reconhecia Pinheiro Chagas (2) - que durante dois anos nem uma só vez a Inglaterra lhes ocultou o perigo. Se não o viram era porque estavam cegos»

Enfim, recomendava o bom-senso que Portugal consolidasse o seu dominio em Angola e Moçambique, possessões que já começavam a despertar a cobiça das grandes potências, em lugar de se lançar na conquista do desconhecido. Não obstante, teimou o Governo neste projecto megalómano e claramente irrealizável, confiando sempre na intervenção alemã em nossa defesa. Simplesmente, os britânicos não a aceitavam - e Bismarck, entretanto, acenava-lhes com propostas de aliança …

Chegámos a Novembro de 1889. Sob o comando do Major Serpa Pinto, vai uma expedição com destino a Moçambique e ao Alto Chire. Reina a agitação entre as tribos negras. Os Macololos - que a Inglaterra considera sob sua protecção - conflituam com as tropas portuguesas e são batidos. De imediato o Governo britânico intervem junto das instâncias diplomáticas nacionais, pedindo que cessem os ataques às estações que detinham no Niassa e no Chire e, bem assim, ao País dos Macololos. Uma vez mais, Barros Gomes responde com evasivas. A 14 de Janeiro de 1890, o célebre ultimato entra-nos pela porta dentro. O Governo português quisera brincar com o fogo - e queimara-se …

Obviamente, foi logo apresentado um enérgico protesto, solicitada a mediação para a resolução do impasse … Mas, ante o poderio britânico, que fazer senão ceder?

Levantam-se as vozes da oposição - a monárquica berrando contra o partido no poder, a republicana zurzindo na pessoa do Rei, aliás recém-chegado ao Trono. Um oceano de intrigas, calúnias, histerismos, numa hora em que o interesse nacional tanto carecia de unidade, disciplina, discernimento. Desabafava Oliveira Martins (3): “o que ofende é que desta aflição se pretende fazer uma exploração. E em carta de 28 de Janeiro desse ano (4), dirigida ao ilustre historiador, Eça de Queiroz como que denunciava a tosca e tardia reacção dos portugueses: “Não estou certo do que deva pensar desse renascimento do Patriotismo, esses gritos, esses crepes sobre a face de Camões, esses apelos às Academias do Mundo, esses renunciamentos heróicos das casimiras e do ferro forjado, essas joias oferecidas à Pátria pelas senhoras, essas pateadas aos Burnays e aos Mózeres, esse ressurgir de uma ideia colectiva, toda essa barafunda sentimental e verbosa, em que o estudante do liceu e o negociante de retalho me parecem tomar de repente o comando do velho Galeão Português». E frisava o burlesco da situação: “esse inteligente patriotismo que leva os jornais a não quererem receber mais periódicos ingleses (!!), os professores a não quererem ensinar mais o inglês, os empresários a não quererem que nos seus teatros entrem ingleses, os proprietários de hotéis a não quererem que nos seus, quartos se alojem ingleses - parece-me uma invenção do inglês Dickens. É de um cómico frio e fúnebre».

É que, conforme refere o Prof. Doutor Soares Martinez (5), “não faltou quem aproveitasse o justo ressentimento patriótico do povo português para dele extrair dividendos políticos». E entrementes, valendo-se do desaguisado entre as duas Nações e da guerrilha interna alimentada pelos vorazes grupos opositores, Cecil Rhodes e a sua Companhia Majestática da África do Sul, preparavam-se já para deitar a unha aos nossos territórios angolanos e moçambicanos.

Urgia, pois, negociar. Novo tratado foi celebrado, assegurando-nos a ligação por via férrea entre as duas colónias e a fixação definitiva das fronteiras de Angola. Evitámos, ainda assim, a invasão. Não obstante, o Partido Republicano continuava a instigar as populações à revolta - e fazia deslocar a Londres o Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano, Magalhães Lima, e José Relvas, solicitando o assentimento britânico quanto a uma mudança de regime em Portugal (6)!

O Ultimato foi, na realidade, a mina de ouro dos republicanos. Doze meses de demagogia, e os mais audazes - ou os mais inocentes - abalançaram-se à insurreição armada, convictos de que o País se levantaria com eles. Informado do plano golpista, o Directório do Partido, imediatamente se demarcou dos seus prossecutores. Ainda não chegara o momento … No entanto, Teófilo Braga segredava incentivos ao portuense Santos Cardoso – ta o procedimento dos que pregavam a coragem e o orgulho nacional…

A revolta de 31 de Janeiro foi obra de, quase só, sargentos e praças. Oficiais aderentes, apenas o Capitão Amaral Leitão e os Tenentes Manuel Maria Coelho e Malheiro. Das unidades aquarteladas na cidade, pronunciaram-se o Batalhão de Caçadores n.º 9 (Taipas) e Infantaria 10 (Torre da Marca), juntamente com alguns soldados da Guarda Fiscal. O local escolhido para a concentração foi o Campo’ de Santo Ovídeo, onde, os sediciosos enfrentaram a primeira desilusão -. a fidelidade à Monarquia sustentada’ pelo Regimento de Infantaria n.º 18. Depois foi a descida da Rua do Almada até à Praça Nova, dezenas, centenas de populares certamente na peugada das tropas, na expectativa do que se iria passar. Proclamada a República nos Paços do Concelho, anunciada a composição do «Governo Provisório» - cujos membros, em grande parte, nem sequer haviam sido contactados (7) - os revoltosos, sem qualquer plano militar pré-estabelecido, resolveram, ali mesmo, ocupar a estação de telégrafo. A multidão - soldados e civis, republicanos e curiosos - toma festivamente o rumo da Rua de Santo António, a dura realidade dos combates muito longe do pensamento dos circunstantes. São do Capitão Amaral Leitão as seguintes palavras: «eu avançava com a maior serenidade e nem mesmo me passava pela mente que ia para um ataque» (8).

Mas já a Guarda Municipal vigiava as movimentações dos sublevados, aguardando o melhor momento para intervir. Posicionado o batalhão no escadório da Igreja de Santo Ildefonso, e dada a recusa do Alferes Malheiro e seus atiradores em retroceder, - faz fogo. É a debanda, o pânico, mortos e feridos, gente que se atropela na fuga. Cerca de 300 republicanos vêm depois entrincheirar-se na Câmara Municipal, de onde são desalojados pela intervenção da Artilharia da Serra do Pilar e de forças de Cavalaria e Infantaria 18. No princípio da tarde, tudo terminara já.

Estes os factos. Acerca deles, ponderava a edilidade portuense, em mensagem enviada a EI-Rei: «é mister, mais que tudo, inquirir das causas que os tornaram possíveis e mesmo fáceis. E a consciência nacional interrogada responde, sem hesitar, que erros de muitos anos; abusivas tolerâncias em toda a espécie de deveres sociais e públicos; quebras frequentes de disciplina, tanto na classe militar como em toda a ordem de serviços públicos, relaxação no cumprimento das obrigações de cada um; irresponsabilidade frequente para faltas de toda a ordem; deploráveis complacências acobertadas com o que abusivamente se chama a doçura dos nossos costumes: tais parecem ser causas gerais que permitiram e facilitaram tão deploráveis acontecimentos. E a Câmara Municipal do Porto, neste momento intérprete dos sentimentos da cidade, entende que faltaria ao seu dever se não chamasse a atenção de Vossa Majestade . sobre estes males, que é dever de todos os cidadãos, desde a mais elevada hierarquia até à mais humilde condição, combater e destruir a todo o custo, se queremos salvar a nossa Pátria do inevitável naufrágio das nações que chegam a semelhante estado».

Duas conclusões é importante, desde logo, que se extraiam de toda esta narrativa, sob pena de estarmos a utilizar a História com intuitos declaradamente demagógicos. A primeira - que o pronunciamento de 31 de Janeiro, na óptica das classificações militares, pouco mais foi do que uma «agitação de caserna»; a segunda - que a esmagadora maioria da população portuense não aderiu à insurreição, que o mesmo é dizer, não se manifestou pela República contra a Monarquia. Por tudo isto, e a finalizar, sempre recordo, àqueles que gostam de praticar a investigação histórica com isenção, o interessante que será compararmos - pondo na balança as respectivas participações militares e apoios populares - a aventura cujo centenário ora se comemora e as três semanas de esperança, em Fevereiro de 1919, correntemente designadas por «A Monarquia do Norte».

NOTAS: (1), (2) e (3) - citados por Vieira de Castro na sua já mencionada obra. (4) - in «Correspondência», Ed. Lello. (5) - in História Diplomática de Portugal, pág. 508. Ed. Verbo. (6) - Cle. Prol. Doutor Soares Martinez, Hist. Diplo¬mática de Portugal, pág. 534, nota 30, que se baseia em Gomes da Silva, «O. Carlos», pág. 153. (7) - Entre outros, Rodrigues de Freitas, Azevedo Albu¬querque, Morais Caldas, José Ventura dos Santos Reis, Joa¬quim Bernardo Soares, Licinio Pinto Leite. Todos eles puderam em Tribunal, posteriormente, demonstrar a sua inocência, sen¬do, por isso absolvidos (Cfe. «31 de Janeiro». in Enciclopédia Luso-Brasileira). (8) - in «História da Revolta do Porto»

Fotos – Casa de Pindela – V. N. Famalicão

João Afonso Machado