Miguel Bombarda: como se fabricou um mártir da república
A posição eminente do psiquiatra Miguel Bombarda no martirológio republicano pode avaliar-se contando o número de placas toponímicas dedicadas a ele por todos os cantos do país. Tal como os arqueólogos deduziram, pelo abundante número de lápides a ele consagradas, que o deus Endovélico era uma das maiores figuras da religião dos lusitanos, também o investigador desse mundo obscuro que é o republicanismo português, avaliará a suma importância deste grande mártir republicano, se viajar de Norte a Sul de Portugal ou de Leste a Oeste, embrenhando-se no interior do país profundo ou deixando-se ficar pela frescura do litoral. Por toda a parte encontrará o nome do ilustre psiquiatra oferecido à veneração pública, nesses autênticos altares do laicismo republicano que são as placas toponímicas. Nas cidades e vilas da república portuguesa não faltam as avenidas, ruas, travessas, praças e pracetas, os largos e os becos com o nome de Miguel Bombarda. Qualquer estrangeiro que viaje pelo país dando atenção às ruas por onde passa, convencer-se-á de que este nome é o de uma das maiores personagens da nossa história.
E se, movido pela curiosidade, consultar algum manual de história contemporânea, encontrará o nome do grande homem, acompanhado do seu retrato e de uma tão breve quão confusa alusão à sua morte e às repercussões que esta acarretou na implantação do regime republicano. O assassínio de Miguel Bombarda, alvejado por um dos seus doentes, “desencadeou”, “despoletou”, “apressou” ou “precipitou” o golpe de 5 de Outubro, “incendiando o rastilho” ou “despertando as iras” necessárias à explosão da revolta, dizem os manuais. Não explicam como é que este acontecimento fortuito teve o condão de provocar a revolta. Deixa-se este ponto envergonhadamente omisso, e o relato falho na sua sequência lógica.
A exploração política da morte de Miguel Bombarda foi feita desde o primeiro dia de forma envergonhada, e com a consciência de se alimentar uma narrativa infiel aos acontecimentos. Nas primeiras horas que se seguiram ao atentado, os jornais republicanos espalharam a notícia, tentando lançar as culpas sobre os “clericais”. Mas como não queriam assumir a responsabilidade da acusação, atribuía-se ao povo a autoria da mesma: “os placards do Seculo, dando a noticia, acrescentavam que “o povo de Lisboa estava convencido de que o assassinato fora obra dos clericaes”. Pediu a policia ao Seculo que fizesse retirar os perigosos placards, no que foi attendida” , conta o último primeiro-ministro da monarquia, Teixeira de Sousa, nas suas memórias (Teixeira de Sousa, Para a História da Revolução). O directório do Partido Republicano alimentava o boato do assassínio com fins políticos, difundia pretensas provas, falava de outro assassinato ocorrido nas mesmas circunstâncias, anos atrás, o que provaria que os “autores” eram os mesmos. Mas ninguém queria tomar a responsabilidade da acusação, que corria por toda a cidade. O escritor Raul Brandão anotava no seu diário: “Mataram o dr. Bombarda. Espalha-se na cidade que foram os padres que instigaram o tenente a assassiná-lo. É falso, mas há correrias no Rossio, e o “Portugal” foi apedrejado. Toda a gente acredita num crime planeado, toda a gente se insurge contra o facto brutal, toda a cidade republicana se transforma num vulcão. No Rossio juntaram-se grupos de gente taciturna e desesperada: Mataram-no! Mataram-no!” (Raul Brandão, Memórias). As mais eminentes figuras do Partido Republicano conheciam a verdadeira versão dos acontecimentos, contada pelo próprio Miguel Bombarda, que se mantivera consciente por largas horas, antes da operação que lhe foi feita para extracção das balas. Apesar disso, não se inibiram de lançar a suspeita contra a “reacção ultramontana, e principalmente contra as congregações, dominadas e dirigidas pelos Jesuítas” (José Relvas, Memórias). Mas enquanto os mais graduados dirigentes republicanos se esquivavam a acusar publicamente os “clericais”, limitando-se a avançar insinuações, o presidente do governo provisório, Teófilo Braga, com aquela falta de senso político que tanto irritava os seus pares no governo provisório, afirmava positivamente, em entrevista a Joaquim Leitão, que a morte de Miguel Bombarda era obra dos clericais, acrescentando que aquele assassínio vinha revelar também o inspirador do crime que vitimara anos antes o dr. Refoios, outro médico envolvido nas lutas “anticlericais”. A semelhança nas circunstâncias em que morreram os dois médicos, ambos abatidos por loucos que sofriam de mania persecutória, trazia a prova de uma origem comum, segundo as deduções de Teófilo, que pensava ter demonstrado assim a inspiração “clerical” dos dois atentados (Joaquim Leitão, A Comédia Política). Esta dedução policial sustentava a convicção partilhada por outros dirigentes republicanos, que no entanto se abstinham de a proclamar em público (José Relvas, Memórias). As notícias mais pormenorizadas da morte de Bombarda, que os jornais publicaram entretanto, dificultavam a defesa consistente de qualquer tese conspirativa. O assassino, tenente Aparício Rebelo dos Santos, estava a ser tratado no hospital de Rilhafoles, era pessoa bem conhecida de Miguel Bombarda, e não tinha relações políticas. O próprio Miguel Bombarda pedira que não lhe fizessem mal, atendendo à sua condição de doente mental.
Mas o Partido Republicano Português não abdicou de reclamar um mártir que tivesse dado a vida pela república. Depois do festejado enterro dos dois “heróis” republicanos, Miguel Bombarda e Cândido dos Reis, consolidou-se a sua elevação aos altares da república, associando-se permanentemente, tanto no ensino oficial como na propaganda do regime, as duas mortes e a proclamação da república. Em ambos os casos fizeram-se todos os esforços para conferir drama e heroísmo aos últimos momentos dos paladinos da república. A respeito do almirante Reis insinuou-se que morrera “em condições muito suspeitas de um atentado” (José Relvas, Memórias), mas os testemunhos de muitos conspiradores, confirmando a firme disposição em que ele estava de pôr termo à vida, cortaram as asas a esta “tese”, que assim morreu à nascença. Para o dr. Miguel Bombarda seguiu-se a receita usada desde a primeira hora: sugerir, insinuar, lançar a suspeita de um assassínio político, não o afirmando, porém, com clareza. Mesmo no ensino primário, em livros destinados a um público desprovido de capacidade crítica, houve o cuidado de expôr os acontecimentos de forma a convencer os alunos daquilo que se queria insinuar. Assim, no manual de “História Pátria” de José Nunes da Graça e Fortunato Correia Pinto, os acontecimentos são “narrados” da seguinte forma: “Miguel Bombarda… foi infatigável na organização do movimento revolucionário que nos trouxe a república. Pelas suas campanhas de todo o momento contra o ultramontanismo, não havia nas fileiras democráticas quem mais odiado fosse dos clericais. Na véspera da revolução foi procurado por um tenente, que sobre ele disparou alguns tiros de revólver que lhe produziram a morte”. (José Nunes da Graça e Fortunato Correia Pinto, Resumo de história Pátria para as Escolas de Instrução Primária. Aprovado pelo governo provisório da república portuguesa. Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1914).
Nos anos seguintes a historiografia republicana, fiel a estes princípios, insinuar mas não afirmar, teve ensejo de mostrar a sua criatividade, ou seja, mostrou em vários tons, com maior ou menor subtileza, como se pode compor uma narrativa destinada a fazer acreditar ao leitor aquilo que o próprio autor sabe não ser verdade. Tivemos, pois, versões para todos os gostos, desde as mais concisas, como a de Lopes de Oliveira: “A 3 de Outubro Miguel Bombarda foi assassinado por um oficial do exército, antigo educando dum colégio da Companhia de Jesus” (Lopes de Oliveira, História da República Portuguesa. A propaganda na Monarquia Constitucional. Lisboa, Editorial Inquérito, 1947)até às mais elaboradas, como a de Bourbon e Meneses, em cuja narrativa se enreda a convicção popular com a do narrador, ao ponto de já não se perceber se ele fala de factos ou de crenças: “cerca do meio-dia, a sucursal do Seculo, no Rossio, afixava esta noticia fulminante como uma descarga eléctrica: - O dr. Miguel Bombarda foi atingido a tiros de revólver, hoje, por um louco que o procurou em Rilhafoles, tendo recolhido ao Hospital de São José em estado grave. O povo de Lisboa está convencido de que o assassinio foi obra dos clericaes – Ao saber isto, Lisboa inteira estremeceu. Não havia dúvida. A batalha com a reacção atingia a última extremidade. Decidido a queimar os últimos cartuxos, o ultramontanismo não refreava já o crime para esmagar os republicanos” (Bourbon e Meneses, História da República. Texto publicado também por Carlos Ferrão na sua História da República).
Nas versões mais populares, como as memória do sargento Soeiro da Costa, afastam-se as conjecturas subtis sobre o estado mental do assassino, para se chegar directamente à conclusão pretendida. Fosse ele um louco ou um bandido, o seu revólver era o da reacção: “havia pouco tempo que um louco ou um bandido, não sei bem, havia desfechado o revólver da reacção sobre Miguel Bombarda.
Sentia-se por isso ferver na alma da população de Lisboa o cachão revolucionário
Quando a veste suja dum padre surgia ao voltar duma esquina, o povo, já sem poder conter a sua justa cólera, apupava-o e, não raro, chegava a fazer-lhe experimentar o peso da sua mão de gigante” (A. Soeiro da Costa, Subsídios para a História da Revolução. Valença, Tipografia A Plebe).
Com o passar dos anos, não apenas a tese do crime planeado caiu em total descrédito, como todos os conceitos que a tinham sustentado cairam no esquecimento. Não mais se falou das conspirações “ultramontanas”, “clericais” ou “jesuíticas”, e por consequência, a morte de Miguel Bombarda passou a figurar nos livros de história tal como a lemos hoje, nebulosamente relacionada com os acontecimentos do 5 de Outubro. No entanto, na literatura republicana contemporânea, e mesmo em obras de carácter académico, ainda podemos vislumbrar esforços para salvar a heroicidade de Miguel Bombarda, caracterizado como um homem que “deu a vida pela república” (História Contemporânea de Portugal. Direcção de João Medina).
Carlos Bobone