No Liceu Bracarense, um mês depois da república
Disse João Chagas – e muito bem – que, consumada a revolução na capital, o novo regime se propalaria a todo o País por mero efeito do telegrafo ou do telefone. Não porque tal questão fosse do desinteresse dos portugueses. Isso não esqueceu a Chagas, mas os pormenores eram dispensáveis. Somente, a falta de meios militares, quando não a ignorância dos mais humildes - o povo campesino - em nada conseguiriam obstaculizar as mais activas franjas de uma tropa já ideologizada e da população das grandes urbes, sectária e ambiciosa. Assim foi instaurada a República, conforme é imparcialmente reconhecido. Sem que, pela província, as gentes manifestassem especial vontade de alterar os seus hábitos, os seus costumes de vida.
O episódio que de seguida se narra constitui exemplo fiel do parco entusiasmo com que a República foi acolhida, concretamente na cidade dos Arcebispos. Onde os estudantes liceais não quiseram deixar de festejar o aniversário d’El-Rei D. Manuel, a 9 de Novembro desse fatídico 1910. Iam lá umas escassas cinco semanas sobre a data tremenda. Sua Majestade encontrava-se já no exílio, e o meio próprio que a rapaziada do denominado Liceu Nacional Central de Braga (com instalações aproveitadas de um antigo convento oratoriano, na Avenida hoje também chamada Central) desencantou de se Lhe dirigir foi a redacção de uma «mensagem». Necessáriamente publicitada, não sopesando o imenso furor causado nas hostes republicanas.
Dizia, então, a aludida «mensagem»:
«Senhor:
Proscrito da Pátria mas não do coração dos portugueses amigos do seu Rei.
E porque o coração não Vos esquece, e porque a nossa veneração e o nosso respeito, são ainda os mesmos que Vos tributávamos quando presidíeis aos destinos desta infeliz Pátria, levantamos ao céu fervorosa prece no dia do Vosso solene aniversário, pedindo à providência divina a graça da conservação da vossa preciosa vida.
Mesmo de longe desta Pátria, traída e escarnecida, que por Vós ainda hoje chora lágrimas mais amargas que as Vossas do exílio, enviamos-Vos as nossas sinceras saudações, esperando ansiosos o dia em que um rasgo de heroísmo Vos restitua o Trono que tanto iluminaste com a Vossa reconhecida bondade.
Senhor! Nós, académicos do Liceu de Braga, portugueses e crentes, esperamos novos dias para a nossa e Vossa Pátria, porque confiamos no alvorecer duma aurora que traga às nossas almas as fagueiras alegrias do passado.
Somos ainda com o Rei e pelo Rei.
Não esmoreça pois a Vossa, que em nós ainda não feneceu, esperança de Vos vermos de novo assente no Trono português.
Viva D. Manuel II, Rei de Portugal e dos Algarves».
É de supor que a mensagem tenha sido remetida, pelos meios adequados, ao seu amargurado destinatário. E, outrossim, copiada e disseminada pela cidade. O diabo! Dela tomaram conhecimento os tiranetes postos a comandar e pouco mais terá sobrado, em documentos, além deste manuscrito que veio à minha posse.
Na margem do qual se lê esta anotação:
«Por termos, nós estudantes do liceu de Braga, enviado esta mensagem, fomos chamados ao governo civil, afim de prestar declarações. Declarámos que enviámos esta mensagem por nosso livre e firme propósito e assinámos os nossos nomes que ficaram arquivados no governo civil. No dia 1 de Dezembro os estudantes republicanos fizeram um protesto contra o facto de termos saudado Sua Magestade, ao qual protesto respondemos com um contra-protesto que igualmente ficam guardados com isto».
Dando de barato tratar-se de alunos dos mais velhos, ainda assim, é com adolescentes de 15 ou 16 anos que o Governo Civil se quer confrontar. Que intima a comparecer nos serviços e a prestar declarações, arguidos do crime de… lesa-majestade? E o despotismo republicano ainda se alongava – insidiosamente averiguava se detrás dos rapazes não andaria mãozinha conspiradora a instigar iniciativas destas. Mas não, clarificaram os estudantes monárquicos: fora de seu «livre e firme propósito» haviam saudado El-Rei. Que acabara de festejar no exílio, jamais voltando a solo pátrio em vida, os seus 21 anos!
Quantos seriam os signatários da mensagem de parabéns? Os mesmos que se deslocaram ao Governo Civil, onde foram “cadastrados”? Não há dados disponíveis para precisar o seu número. Mas, ainda de acordo com a acima transcrita nota, reagiram os seus colegas partidários da República. Através deste interessante panfleto:
«PROTESTO
DA
Academia do Liceu Nacional e Central de Braga
Ao povo português e a todos os nossos colegas
A academia do Liceu Nacional Central de Braga, ufanava-se de, numa maioria esmagadora, comungar no altar da Liberdade.
E como tal, ao ter conhecimento da ignominiosa teia em que a desqualificação mental de um restrito número de colegas seus a pretendeu enredar, na redacção equívoca duma mensagem de saudação e profissão de fé política enviada ao rei deposto Manuel de Bragança, apressa-se a correr à estacada para bradar bem alto, para que todo o Portugal o ouça, bem alto para que o povo português o sinta.
Mentira! Mentira! Tartufos!
Que ideia faríeis do nosso carácter, cidadãos portugueses e colegas nossos, depois da publicação da mensagem? Do nosso carácter que a descoberto, sem máscara e sem rebuço, se manifestava em apoteose de frenesim, vitoriando os caudilhos da Liberdade? De nós que amamos e estremecemos a mãe comum, a nossa querida Pátria, berço de heróis e túmulo de gigantes? Certamente que pensasteis o mesmo que nós, a respeito desses indivíduos de consciência negra como a fuligem e duvidosa como a encruzilhada. Desses que não militam em princípios, mas sim em interesses, contando que lhes satisfaçam a desmedida ambição e o encendrado desejo de lançar toda a bílis que encerram no seu âmago alfugento, no pensamento puríssimo das almas em flor.
Eis aqui bem patente o nosso protesto e a concretização do nosso pensar.
E se um dia a Pátria, numa situação angustiosa para a sua dignidade, precisar dos seus filhos, nós teremos então almejado o momento de lhe patentear quão sincera é esta crença ferida em cordas de bronze no nosso coração de patriotas.
Os delegados da Assembleia Geral da Academia que em 29 de Novembro resolveu publicar este protesto:
Francisco Martins Lage
Paulino António da Costa
Mário Conceição Rocha»
Ora aqui está uma folha merecedora de vários reparos. Vamos por partes.
Ressalta, desde logo, o sujeito do discurso. Os monárquicos falavam por si. Na resposta, os republicanos diziam-se mandatados pela Academia. Péssimo sinal. Inflamação revolucionária, muito são os que se lembram – já no abrilino emaranhado ideológico - desse triste e autocrático registo. Mas não é tudo. Ainda no apurado palato do empolgar das gentes, aí está a evidente denúncia de putativos focos conspiratórios. E, fatalmente, o recurso à calúnia. Ao desprezo. Os estudantes monárquicos, ora são pouco dotados (intelectualmente?), ora significam uma minoria; tão depressa encobrem intenções tenebrosas quanto os seus “iluminados” colegas se entretêm desprezando o trato devido ao Rei; o insulto integra o discurso – ou o panfletarismo não estivesse na ordem do dia – a lealdade torna-se pecado de consciência e, como sempre, os vanguardistas falam para o mundo, nunca para os seus apaniguados.
Em poucas palavras, esta será a assinalável diferença entre os dois reproduzidos documentos.
Restarão os erros de ortografia. A não esconder, pese embora a inegável “encomenda” revelada por tão burilado texto. A urdidura terá sido encargo dos docentes, porque não ficou para a História o nome literário das sumidades pretensamente representativas da Academia. Pouquinhos, como se viu. Apenas três, não é de crer o contrário.
Mas, contados os tostões, porventura, não ficou sem réplica o «Protesto» republicano. Agora, em trabalho de tipografia:
«Resposta à letra ao Protesto dos cidadãos:Francisco Martins LagePaulino António da Costa
Mário Conceição Rocha
Ao povo português
e a todos os nossos colegas
Os cidadãos Francisco Martins Lage, Paulino António da Costa e Mário Conceição Rocha, como delegados da Assembleia Geral da Academia vieram a público protestar, em nome da Liberdade, contra o facto de um grupo de académicos do Liceu de Braga terem saudado o Senhor Dom Manuel, no passado dia 15 de Novembro, afirmando-lhe a sua fé monárquica.
Respondemos.
Usamos de um direito, cujo exercício ninguém tem autoridade de embargar-nos e muito menos os protestantes, que dizem «comungar no altar da Liberdade».
O vosso protesto é uma deplorável manifestação de intolerância, contra a qual protestamos nós em nome da Liberdade!
As insinuações grosseiras e baixos epítetos que nos são dirigidos no protesto pelas «almas em flor» dos protestantes, não descemos, sequer a devolvê-las aos seus autores… têm o nosso desdenhoso desprezo.
Declaramos ao povo português, para honra nossa e do Liceu de Braga, que protestamos contra os atentados à gramática que pululam no protesto dos nossos colegas a quem apesar de tudo, afirmamos a nossa leal camaradagem escolar, sempre acima das discussões políticas.
E nada mais.
“Se um dia a Pátria, numa situação angustiosa para a sua dignidade, precisar dos seus filhos”, saberemos também nós cumprir o nosso dever, entregando à Pátria a nossa mocidade, a nossa vida. Apartemos de nós a paixão partidária, que às vezes cega, como sucedeu aos protestantes, e brademos todos, porque somos portugueses:
Viva a Pátria!
Pelo grupo que saudou o Senhor Dom Manuel,
Jorge de Lima Machado
Manuel José Soares da Silva
João Pinheiro da Figueira Machado
José Carlos de Tavares Meireles
Tomaz Pizarro de Sampaio e Melo
Joaquim da Conceição Ribeiro
Joaquim José Lopes
Teodoro Augusto Braga da Costa».
Eram mais, apesar de tudo, os que puseram o nome no cepo. E muitos mais representariam, com certeza. Agora, provavelmente, auxiliados na configuração do «contra-protesto» por quem melhor do que a sua juventude soubesse medir as palavras apropriadas…
Mas nada desobrigou a nova deslocação ao Governo Civil. Burocracias…
***
Desconheço em que ficou o “caso”. Sei apenas que os estudantes de Braga não se calaram. A avaliar pelo cartão tarjado de negro que, em Janeiro seguinte (1911), faziam distribuir:
«Ex.mº Snr.
Os alunos monárquicos do Liceu de Braga, reunindo em assembleia geral, determinaram mandar celebrar no templo de Santa Cruz, solenes exéquias por alma do chorado Rei de Portugal D. Carlos I e o seu malogrado filho D. Luís Filipe. Por esse motivo vêm pedir a V. Ex.ª o especial obséquio de os auxiliar com o seu óbulo, convidando desde já a V. Ex.ª e ilustre família, a comparecer no referido templo às 9 e meia horas da manhã, em ponto, do dia 1 de Fevereiro.
A Comissão»
Saudosismo, dirá a modernidade. Pois que seja. Mas mantém-se. Agora, em tempos de pós-modernismo…
João Afonso Machado