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Virtudes e malefícios do Sufrágio Universal


Antes da tomada do poder em 1910, o sufrágio universal era um dos pontos essenciais do programa republicano. Não se concebia a república portuguesa senão sob a forma democrática, usando-se indiferentemente os nomes de democracia ou república, como sinónimos ou conceitos inseparáveis. O sufrágio universal era a condição necessária e suficiente para se estabelecer a república democrática. A ausência do sufrágio universal no regime monárquico fornecia a justificação categórica de todos aqueles que alegavam a falta de legitimidade da monarquia constitucional, advogando a imposição da república por métodos revolucionários, incluindo o recurso aos atentados bombistas, à rebelião armada e à insurreição popular. Os defeitos da legislação eleitoral, que restringia o sufrágio, explicavam o divórcio entre a vontade da nação e a representação parlamentar, asseveraram os enviados oficiais do PRP em declarações à imprensa de vários países europeus, meses antes do 5 de outubro.

Mas a chegada às cadeiras do poder abriu os olhos da nova classe dirigente para os embaraços que a vontade popular poderia trazer ao “rumo progressivo” dos povos. As primeiras eleições em regime republicano manifestaram já um muito peculiar conceito de soberania popular. A introdução do conceito de “eleição sem votos”, sob o pretexto de que nos círculos onde não se apresentassem listas da oposição era inútil montar todo o aparato do sufrágio, foi uma lição de política que a jovem república portuguesa deu a todo o mundo civilizado. O ministro do interior, António José de Almeida, que no ano anterior fizera publicar na sua revista “Alma Nacional” extensos artigos reclamando a imperiosa necessidade do sufrágio universal, disseminava a responsabilidade da nova lei eleitoral por todos os órgãos do partido, pelos ministros e governadores civis, alegando que os consultara e tivera em conta antes de aprovar o diploma. Na Assembleia Nacional Constituinte, nascida destas “eleições”, os pretensos representantes do povo, não obstante serem quase todos (97,9%) membros do Partido Republicano Português, e portanto genuínos democratas, exprimiram sem complexos as reservas que opunham ao sufrágio universal, apresentado agora como o “voto dos analfabetos”, e não como “a expressão da vontade do povo”.

 

Na sessão de 4 de Agosto de 1911, o deputado Faustino da Fonseca expunha uma opinião que começava a conquistar adeptos naquela democrática assembleia:

 

Tem-se falado em suffragio universal, com o proposito de conceder o voto ao analfabeto.

Não pode ser.

O suffragio universal é reclamado contra o voto censitario; tem por fim dar ao operario, que só possue o braço, o direito eleitoral, limitado, em certos  paises, aos contribuintes e proprietarios.

Ninguem podia prever nos paises cultos que se reclamasse o suffragio universal para os analfabetos, quando tem bastado os ruraes, embora saibam ler, para contrariar, na Suissa e na França, diversas medidas de progresso.

Ora, se não podemos conceder o voto aos trabalhadores que não sabem ler, não podemos conceder o voto plural aos burgueses, que mal sabem ler e que afinal nada lêem.

A grande fatalidade da terra portuguesa é não existir o habito da leitura; os proprios politicos não se regulam pela que lêem, mas pelo que ouvem na tabacaria, no café ou no centro”.

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A estes argumentos respondeu um deputado, defendendo a honra do povo analfabeto: “Ha analfabetos mais intelligentes que esses bachareis e esses burgueses; foram mais uteis à Republica do que elles!“.

Mas o orador replicou-lhe, com implacável desdém:”Intelligentes, não! Lançaram-se na luta, arrastados pelo aspecto messianico da palavra magica - Revolução! - Mas essa inconsciencia é perigosa. O messianismo é triste condição dos povos bárbaros, e nós não nos podemos governar à marroquina.O que queremos é a collaboração dos illustrados, dos intelligentes; porque as sociedades não são dirigidas pelas maiorias incultas, mas pelas minorias organizadas, actuando sob uma forte disciplina mental“.(Diário da Assembleia Nacional Constituinte. Sessão nº 38)Na mesma sessão, o deputado Sidónio Pais chamou a atenção da assembleia para o perigo da “ditadura de uma multidão, tão perigosa ou mais do que a ditadura de um déspota“, enquanto o deputado Ladislau Piçarra emitia reservas ao voto dos analfabetos. Depois deles, o deputado João de Freitas explicava o seu complexo projecto destinado a constituir um senado em cuja eleição interviessem apenas os corpos sociais compostos de “cidadãos sincera e devotadamente republicanos, ilustrados e que com tanto civismo contribuiram para a obra patriotica da implantação da republica”. Deste último projecto ficavam afastados, já se vê, não apenas a “grande massa analfabeta e inculta da nação”, mas também os membros das juntas de paróquia rurais, visto que estes, “a respeito de illustração”, não se distinguiam, por regra, da maioria da população.Como se vê, passado menos de um ano sobre a queda da monarquia, o vírus anti-sufragista alastrava com uma força avassaladora pela classe política republicana. O recurso ao voto perdia importância no confronto das forças políticas, sendo substituído pelo jogo das intrigas e alianças, dos golpes de força e dos confrontos de rua. A assembleia constituinte, em vez de se dissolver depois de aprovada a constituição, decidiu prolongar o seu mandato até 1915. E nas eleições intercalares de 1913, convocadas para a substituição dos deputados que passaram a senadores, apresentou-se uma nova lei eleitoral, que eliminava definitivamente os analfabetos do corpo dos eleitores, reduzindo o censo para cerca de metade dos cidadão que tinham o direito de voto nos últimos anos da monarquia. Num vigoroso discurso, Afonso Costa desafiava os críticos da lei: “Se querem fazer eleições com votos inconscientes, façam-nas os senhores. Eu é que não as faço!” E assim se dava o golpe final nas convicções democráticas do republicanismo português. Os últimos vestígios de respeito pelo voto popular vieram à superfície durante as “ditaduras” de Pimenta de Castro e Sidónio Pais, mas logo que se ultrapassaram estas duas situações de excepção, voltaram à paz e ao esquecimento da sepultura os restos mortais do sufrágio universal.

 Carlos Bobone