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República: do sonho à desilusão


Neste ano centenário da república, a ciência histórica académica parece ter estabilizado em volta de uma tese que, afastando-se das interpretações do republicanismo ortodoxo e reconhecendo muitas das falhas do regime inaugurado em 1910, tenta ainda salvaguardar a pureza do ideal republicano, salientando o presumível contraste entre uma doutrina imaculada e o regime que realmente se implantou. A república terá sido, a fazermos fé no que nos dizem catedráticos e investigadores especializados, um ideal que não se cumpriu, um sonho que falhou a sua realização concreta. As grandes figuras do regime transformam-se, nas mãos de biógrafos complacentes, em actores de um grande drama, que começa no vigor dos impulsos generosos e acaba na amargura da desilusão.

Esta forma de apresentar os dados históricos, representa já um assomo de rebeldia, quando comparada com a estrita apologia da primeira república, devotamente praticada pelas gerações de historiadores-militantes como Lopes de Oliveira, Luís de Montalvor, Raul Rego, Carlos Ferrão ou David Ferreira, para quem a “república democrática” foi um regime cuja vida política decorreu num ambiente da “máxima liberdade possível”.

A distinção rigorosa dos dois planos do republicanismo, o da propaganda em que se teriam manifestado todos os sentimentos generosos e o da implantação do regime, em que teriam vindo à superfície todas as incompatibilidades e todas as dissenções, embora revele um meritório esforço de independência frente à tradicional veneração pelos poderes constituídos, deixa ainda de fora a maior parte das explicações possíveis para o  carácter bizantino e as insustentáveis contradições da experiência republicana em Portugal. Remetendo as interpretações para o campo do drama pessoal, para a dolorosa consciência do abismo que separa o sonho e a realidade, deixa por explicar como se deu a súbita transformação dos sonhadores em opressores. Para quem leia os nossos académicos, parece que a metamorfose se deu de um dia para o outro, que os idealistas da véspera se tornaram os intriguistas do dia seguinte, que os adeptos do sufrágio universal e da liberdade de imprensa se viram num passe de magia transfigurados nos seus mais convictos inimigos. 

Mas a mais grave insuficiência desta tese consiste em ignorar as principais  características da propaganda republicana, esquecendo ou pondo de lado a abundante literatura política produzida ao longo dos trinta anos que antecederam a implantação da república. Qualquer amante da história que, dispensando o filtro das dissertações académicas, consulte directamente o rico manancial da propaganda republicana, seja nos seus órgão mais populares como “O Século” de Magalhães Lima, “O Mundo” de França Borges e “A Lucta” de Brito Camacho, ou nos de maiores pretensões intelectuais como as “Cartas” de João Chagas e a “Alma Nacional” de António José de Almeida, encontra uma atmosfera  muito diferente das nuvens de idealismo doutrinário que os historiadores gostam de descrever. O tom dominante é de uma extrema agressividade, sendo os textos compostos com prolixa adjectivação, destinada a gerar sentimentos indignados e não a propor novas formas de organização social. A doutrina democrática está presente como pano de fundo, mas num plano muito secundário, tanto no espaço que ocupa como na linha de argumentação. O lugar de honra é conferido às exaltadas denúncias dos “manejos jesuíticos”, tema obsessivamente desenvolvido em dezenas de textos diários, que apesar da sua muita extensão não têm outro conteúdo senão chamarem às actividades dos jesuítas “manejos”, apelidando-os ainda de “perniciosos”, e dando-os por responsáveis por todos os males que pesam sobre o país. Os insultos à família real e a todos os políticos monárquicos, sem limites alguns de decência, ocupam também uma larga porção da propaganda republicana. O diagnóstico do estado em que se encontra o país é elevado aos cumes do pessimismo, e daí se retira a legitimidade para atacar com destemperada fúria o regime, os jesuítas, a família real e os políticos. Os poetas republicanos Guerra Junqueiro e Gomes Leal usam toda a sua eloquência para descrever o povo oprimido, ultrajado, espoliado, reduzido à miséria, à fome, à ruína moral e material. As poucas vozes que se levantavam para contradizer tão exaltadas denúncias, como a de Ramalho Ortigão que apontou a falta de correspondência com a realidade no “Finis Patriae” de Guerra Junqueiro, ficaram submersas na torrente de literatura apocalíptica que todos os dias inundava as bancas dos jornais. Os intelectuais do PRP resumiam a história da dinastia Brigantina a um “miserável rosário de infamias, de cobardias e baixezas”, descrevendo a Casa Real “enlameada pela cobardia de todas as traições e envilecida na torpeza de todas as violencias”. Mesmo aquelas sumidades do partido republicano que mais tarde se cobriram com uma auréola de moderação, como Basílio Teles e António José de Almeida, invocavam o “estado de aviltamento e miséria” a que a monarquia conduzira Portugal, para justificar a “interferencia insurreccional dos cidadãos” (Basílio Teles), ou seja a tomada do poder pela força, enquanto recusavam qualquer compromisso de cumprimento de regras no debate político, qualquer comedimento nas palavras, qualquer legalismo, qualquer sinal de “fraqueza” ou de conciliação perante os “salteadores da pátria e do povo”. A solução que estes “idealistas” apresentavam estava longe de revelar respeito pelos adversários políticos: “o problema nacional tem de ser resolvido a tiro e só a metralha, infelizmente, pode purificar o atoleiro em que a sapata clerical de um regime odioso, a cada momento, revolve o entulho e a vasa”, clamava António José de Almeida em 1910 na “Alma Nacional”, enquanto outros órgãos da imprensa republicana, menos afectos à moderação, despejavam diariamente incitações à vingança contra a “canalha” que roubava o povo. A família real não escapava aos insultos e às ameaças, e embora o rei D. Carlos, mesmo depois de morto, fosse o mais visado, nem a idade nem as dramáticas circunstâncias em que subiu ao trono pouparam D. Manuel às agressões da propaganda republicana, que nos seus momentos mais calmos lhe chamava o “sumido vulto de uma criança cobarde e deformada”(Camara Reys). 

 A leitura da propaganda republicana, depois das primeiras reacções de espanto que provoca, traz consigo o salutar efeito de nos resguardar do sentimentalismo indulgente com que os historiadores catedráticos cobrem as mais insanas emanações do republicanismo português. E ao mesmo tempo lança a luz sobre o fio condutor que une esses dois mundos, aparentemente separados mas na verdade estreitamente unidos, o da república sonhada e o da república proclamada. Para quem gosta de finais felizes, fica também o consolo de verificar que a república não constituiu uma inteira desilusão, pois se não cumpriu as mais importantes promessas do programa do PRP – sufrágio universal, liberdade de imprensa, separação dos poderes -, cumpriu no entanto as principais ameaças disseminadas no tempo da propaganda: expulsão dos jesuítas, banimento da família real, expulsão das congregações religiosas, abolição do ensino religioso. 

Por Carlos Bobone,publicado originalmente no Correio Real, boletim da Real Associação de Lisboa