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Feminismo e Antifeminismo na República Portuguesa - 1


O carácter do feminismo republicano é tão alheio ao que se entende hoje no mesmo conceito, que alguns historiadores e cronistas, para o tornarem inteligível, imaginaram a ocorrência de uma dramática ruptura entre as mulheres emancipadas e os políticos da república. “O capítulo da história sobre as mulheres na Primeira República é uma novela de traição”, afirma bombasticamente o historiador do “Diário de Notícias”, explicando em seguida que as mulheres republicanas bordaram as bandeiras desfraldadas no dia da revolução, recebendo em paga o incumprimento da “promessa de igualdade de género”, sendo-lhes recusado o direito de voto. Este presumível compromisso, que não se encontra no programa do partido republicano nem nos discursos dos seus próceres, é uma dedução de historiadores que não concebem o feminismo sem sufragismo, e andam arredados da literatura republicana. Nessa caudalosa torrente formada pela imprensa republicana, a mulher, a sua dignidade e a sua missão sagrada, são motes desenvolvidos com frequência, mas o alargamento do sufrágio ao sexo fraco é tema raro e mal acolhido.         

 

Quando se falou do voto feminino pela primeira vez, na Assembleia Constituinte de 1911, a sugestão despertou tão pouco interesse, que foi saudada com um comentário isolado, uma frase curta, lacónica, recusando categoricamente a utilidade do voto feminino, com um argumento que a maioria da Câmara terá considerado suficiente:

 

Tem dado lá fora mau resultado porque as mulheres teem sido quase todas reaccionarias” (Actas da Assembleia Nacional Constituinte. Sessão nº 21, de 14 de Julho de 1911). 

 

Esta linha de raciocínio, negando ao voto um valor em si mesmo e fazendo-o depender dos bons ou maus resultados que dele se retiram, não despertou protestos nessa assembleia em que todos possuíam os mais legítimos pergaminhos democráticos, e mesmo o orador, o deputado Djalme de Azevedo, que havia proposto o acesso das mulheres às urnas, reconheceu a validade da objecção e tratou logo de tranquilizar os ouvintes, declarando que pretendia excluir do direito de votar as mulheres menos instruídas, que eram também as mais reaccionárias.

 

Numa tão breve e concisa troca de impressões ficou gravado, em toda a sua riqueza filosófica, o drama do feminismo republicano. 

 

Nascido numa posição subordinada, sujeito aos superiores critérios do anticlericalismo, nunca pôde libertar-se de uma posição paternalista, onde se escondiam profundas reservas a respeito do sexo feminino e das suas capacidades políticas. A emancipação da mulher era entendida como um esforço para afastá-la da tutela da igreja e do confessionário, libertando-a dos “preconceitos” e da “superstição”. É esse o conteúdo principal da propaganda republicana, quando se trata da condição feminina. Podemos tomar como padrão a conferência que Fernão Boto Machado, dirigente do PRP e da maçonaria, deputado e senador da república, proferiu em 1910: “A queda do monstro. Pela emancipação da mulher. Pela liberdade de consciência”. Aí se aprende que a elevação do papel social da mulher depende, inteiramente, da sua conversão aos valores laicos, da sua transformação num agente do progresso liberal, da sua adaptação a um mundo sem igrejas, sem confessores, sem a sujeição das consciências aos ditames clericais.    

 

O feminismo republicano vinha envolto em expressões de pródigo elogio ao sexo feminino, mas o conteúdo das suas propostas apontava sobretudo à dissolução dos laços que prendiam as mulheres à religião.

O respeito e mesmo a veneração da mulher eram constantemente invocados em floreadas expressões de galantaria, exprimindo a mais exaltada admiração pelo belo sexo, por esses “seres sublimes”, por essas “almas delicadas”, e pela sua função “vivificante no lar”.  Mas  por muito exaltantes que fossem os elogios, nunca ficava  esquecida a situação de menoridade a que esses “anjos” haviam sido reduzidos pela igreja e pela monarquia. A emancipação de tão nobres seres não significava, para os republicanos, dar direitos políticos às mulheres, mas sim libertá-las da tutela da igreja, afastá-las dos confessionários e das manifestações devotas, em suma, dar-lhes uma consciência política e social que as tornasse permeáveis ao ideário laico republicano.

 

Quanto às relações entre mulheres e homens, não se cansava a retórica republicana de afirmar que os maridos não eram proprietários das suas mulheres, e de condenar em abstracto os homens que reduziam o sexo feminino a condições “humilhantes”. E a mais ousada  conclusão que daí tiravam era a defesa do divórcio. Mas admitir a mulher às altas  deliberações da política, não era prato incluído na ementa republicana. 

 

O anticlericalismo de inspiração francesa sempre opusera fundas desconfianças à admissão das mulheres no mundo político. Vendo nelas o mais sólido e constante apoio do clero, a parte da população que mais cegamente se abandonava nas mãos dos padres, deixando  dirigir a sua consciência por esses “hábeis manipuladores do espírito humano”, não hesitavam em reconhecer no sexo feminino o inimigo natural do “livre-pensamento”. Em 1921 uma das figuras eminentes do movimento anticlerical em França, o escritor André Lorulot, condensou as queixas do “livre-pensamento” contra as mulheres, numa conferência intitulada “O nosso inimigo: a mulher” (Notre ennemi, la Femme. Paris, 1921). 

Carlos Bobone