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Feminismo e Antifeminismo na República Portuguesa - 2


Quando o jornalista Tomé Vieira revelou ao mundo o motivo da oposição republicana ao voto feminino, reproduzindo o que Bernardino Machado confidencialmente lhe revelara, muitos anos antes, julgou o veterano repórter que trazia ao conhecimento público um inviolado segredo, e rodeou a revelação de um grande aparato de pormenores, dedicando-lhe um capítulo das suas memórias, em que o ponto alto é esta declaração do antigo presidente da república:

“Não escreva. Isto não é para a entrevista. Meu amigo, a mulher portuguesa é por índole e educação muito conservadora. Seria um perigo para a República conceder-lhe o voto. Isso não. Nós temos de defender a República” (Tomé Vieira, Memórias de um Repórter).

O experiente político, que ocupou os lugares cimeiros na hierarquia da República Portuguesa, teria bons motivos para resguardar tão cautelosamente as suas opiniões, mas outros correligionários seus não escondiam o que pensavam, e as razões de Bernardino Machado eram moeda corrente no republicanismo anticlerical que se difundira pela Europa. Fiel à sua filiação ideológica, a opinião republicana em Portugal esteve sempre atenta, numa posição de grande reverência, ao movimento de ideias que vinha de França.

Poucos meses antes da revolução de 5 de Outubro, a revista “Alma Nacional”, dirigida por António José de Almeida, debruçava-se sobre a opinião da “intelectualidade civilizada”, isto é, dos escritores franceses, a respeito da intervenção das mulheres na política.  Raul Proença revelava o seu pensamento num comentário ao inquérito  que correra em França, tendo sido chamados a pronunciar-se os maiores intelectuais da época sobre as “reivindicações feministas”. O jornalista português classificou em quatro grupos as respostas que leu na imprensa francesa:
O primeiro incluía os que estavam a favor do sufrágio feminino com grandes reservas, ou seja, admitindo-o apenas depois de as mulheres percorrerem um longo caminho educativo. Era com estes que simpatizava o futuro ideólogo da “Seara Nova”. Seguiam-se os que se declaravam contra qualquer tipo de sufrágio, por não acreditarem na democracia, e para esses a questão feminista não se levantava. Em terceiro lugar vinham os que se opunham frontalmente aos direitos políticos das mulheres, opinião sustentada pelo escritor anti-clerical Theodor Reinach, com argumentos a que Raul Proença reconhecia “uma parte de verdade”: por um lado prognosticava que “o sufragio politico das mulheres seria a reacção provavel, a volta triunfante do clericalismo, a destruição, em muitos casos, da paz domestica, o fim da velha cortesia francesa”. Por outro lado, afirmava que a lei do  progresso exige a especialização de funções, em todas as instituições, e que também, portanto, a função política se deveria confinar ao sexo masculino. Em último lugar vinha o grupo dos que defendiam o voto feminino sem reservas, opinião que Proença condenava como ilógica, explicando: “Fizemos a mulher um ser inferior, sem iniciativa, escravo dos maiores preconceitos. Depois de a termos feito assim destituida de todas as qualidades directoras, entregar-lhe nas mãos as rédeas do governo, parece-me que seria preferivel entregá-las aos traficantes do outro sexo” (Alma Nacional, nº 24, Julho 1910).             

Ao feminismo paternalista, muito declamatório e retórico, juntou-se na primeira década do século XX o feminismo militante, que agrupava mulheres “emancipadas” e livres de preconceitos. Estas, embora tendo por missão reclamar a igualdade entre mulheres e homens, partilhavam as reservas do republicanismo anticlerical a respeito da maioria do seu sexo. Recolhiam com devoção as “luminosas” palavras de um republicano histórico, como Manuel de Arriaga, quando ele dizia que “a mulher portuguesa tem sido até hoje o maior auxiliar da tirania”. A escritora Ana de Castro Osório, que viria a presidir à Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, fez em 1905 um diagnóstico da condição feminina em Portugal. Reconhecendo que o nosso país não era dos piores, no que respeitava à sujeição das mulheres, reclamava, no entanto, alterações legislativas e mais investimento na educação feminina. Mas sobretudo admoestava os dois sexos: às mulheres portuguesas, aconselhava-as a deixarem-se de frivolidades, a “tornarem-se mulheres como o devemos ser: criaturas conscientes e autónomas, companheiras e aliadas do homem, as verdadeiras educadoras dos seus filhos”. E aos homens cultos, censurava-lhes essa transigencia, essa “tolerancia”, com que aceitavam as crenças das suas mulheres: “indignam-se contra as mulheres e são os próprios homens cultos que transigem com ellas, nas suas crenças e nos seus prejuizos; elles, os que não têm pejo de dizer publicamente que – embora se sintam libertados, embora os seus espiritos pairem alto numa atmosfera de saber e certeza que os orgulha – consentem que as esposas continuem a crêr o que elles descrêm, a vêr o que elles não vêem, a seguir o que elles não seguem, - porque querem ser tolerantes!” (Ana de Castro Osório, Às Mulheres Portuguesas. Lisboa, 1905).

Convergindo, pois, ambos os feminismos, num diagnóstico desfavorável à generalidade do sexo feminino, não admira a prudente reserva com que sempre foram acolhidas as propostas de extensão do voto a esta metade da população. As mais activas defensoras do sufrágio feminino, as militantes da Liga Portuguesa das Mulheres Republicanas e da Associação de Propaganda Feminista, impuseram estreitos limites às suas reivindicações. Mesmo essa heroína do feminismo luso, Carolina Ângelo, a primeira mulher portuguesa que votou, arrancando o seu voto à imprecisão da lei eleitoral, era muito restritiva nas propostas que fazia com as suas companheiras de activismo. Numa representação conjunta apresentada à  Assembleia Nacional Constituinte, propuseram o voto apenas para as mulheres diplomadas com cursos superiores, para as diplomadas com o curso de Instrução Primária Superior, para chefes de família que soubessem ler e escrever e mulheres comerciantes que soubessem ler e escrever. Alguns historiadores optaram por ver nesta proposta um sinal de moderação (Maria Alice Samarra, Operárias e Burguesas. As Mulheres no tempo da República. Lisboa, 2007). Mas quem observa o ambiente em que nasceu o feminismo republicano, encontra aqui mais desconfiança do que moderação. E essa desconfiança mostra-se tão persistente, que vinte anos mais tarde, quando se anuncia finalmente a extensão do direito de voto às mulheres, é com as mesmas reservas e muito pouco entusiamo que Ana de Castro Osório, entrevistada por Rocha Martins, se pronuncia sobre essa conquista.  

Carlos Bobone